Negócios

Água, malte, lúpulo e… investimento

Em seis anos, R$ 7 bilhões foram alocados pela Heineken no Brasil para construir fábrica, ampliar produção e lançar produtos, inclusive refrigerante

Crédito: Claudio Gatti

Presidente da Heineken Brasil, Mauricio Giamellaro comanda projeto de expansão da produção no País, que se tornou a principal operação da companhia no mundo (Crédito: Claudio Gatti)

Por Beto Silva

Desnecessário detalhar quão visionário é Bill Gates, o bilionário americano fundador da Microsoft. Invariavelmente está no Top 10 da lista das pessoas mais ricas do mundo, com fortuna avaliada em US$ 113 bilhões, segundo a Forbes. Apenas esse dado já diz muito sobre o homem que revolucionou o uso de computadores. E por que essa mente brilhante estaria investindo em um mercado tradicionalíssimo como o de cerveja, ao comprar 3,76% de participação da holandesa Heineken? Bem, os números podem embasar essa resposta, que tem o Brasil como protagonista.

Primeiro, vamos aos dados. Gates desembolsou R$ 4,9 bilhões, em fevereiro, para adquirir 10,8 milhões de ações da Heineken. A cervejaria fechou 2022 com 28,7 bilhões de euros de faturamento, 30,9% superior ao ano anterior. No primeiro trimestre deste ano, receita de 7,6 bilhões de euros, 9,2% maior do que no mesmo período do ano passado.

E onde o Brasil entra nessa história? Vamos recorrer mais uma vez aos números. Segundo relatório da companhia referente ao resultado de janeiro a março, a receita líquida no País cresceu em torno de 20% “impulsionada por preços, premiunização e crescimento de volume”, à frente do mercado.

(Divulgação)

Brasil é estratégico para a Heineken

Esse destaque do Brasil no informe se justifica pela importância do mercado nacional nas vendas globais da empresa e pelos investimentos feitos aqui nos últimos seis anos.

Desde 2017, foram quase R$ 7 bilhões, que fizeram da operação brasileira a maior do mundo para a organização holandesa, que tem a cerveja mais internacionalizada do planeta e completa 150 anos de história neste ano. Quando a operação dela começou em território tupiniquim, em 2010, era só o 17º maior mercado global da companhia, calcado basicamente por importações e vendas de parceiros.

“Estamos vivendo um bom momento. Temos nos divertido e celebrado essa história de mais de dez anos de Brasil com muito sucesso”, disse à DINHEIRO Mauricio Giamellaro, presidente do Grupo Heineken no Brasil.

Nessa trajetória, o executivo cita algumas “transformações” que a Heineken promoveu no mercado interno. Uma delas é a participação da cerveja premium, que ganhou o paladar do brasileiro.

No início da década de 2010, quando chegou ao Brasil, esse segmento era responsável por 3% das vendas totais de cerveja. Hoje, corresponde a 30% dos 15,4 bilhões de litros de cerveja produzidos no País em 2022, 7,7% a mais do que 2021, segundo levantamento da Euromonitor International, a pedido do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv).

Isso representa uma média de 74 litros de cerveja por habitante. Em números totais, é o terceiro maior produtor do mundo, atrás apenas de China (46 bilhões de litros) e dos Estados Unidos (22,1 bilhões de litros).

Especificamente no segmento de maior valor agregado, a marca de origem holandesa impera. Giamellaro dá os números:

“De cada dez cervejas premium vendidas no Brasil, seis são Heineken”

O que fez a Ambev, líder do mercado interno geral — por causa de marcas mainstream –, movimentar-se. A concorrente ampliou ações para alavancar a belga Stella Artois e trouxe ao seu portfólio a alemã Spaten, ambas mais amargas e de rótulo e garrafa verdes. Qualquer semelhança com a Heineken não é mera coincidência.

Além de produção de cerveja em várias categorias, Heineken lança refrigerante premium, com ingredientes naturais (Crédito:Divulgação)

Outra transformação que a companhia holandesa estabeleceu por aqui é a qualidade. “Alavancamos o conceito puro malte, inclusive dos concorrentes. Atualmente tomamos uma cerveja que é incomparável às de seis ou sete anos atrás”, afirmou o presidente da Heineken Brasil.

Ele refere-se não apenas à Heineken, mas também aos rótulos convencionais da companhia, como Amstel, Devassa e Tiger. A liderança desse segmento é das marcas Skol, Brahma, Antarctica (da Ambev), Itaipava (da Cervejaria Petrópolis), Schin e Kaiser (estas duas também do grupo Heineken).

O mantra da empresa holandesa é justamente ser “a melhor cervejaria, não a maior”, de acordo com Giamellaro. Mas com os investimentos e crescimento registrados, não dá para fugir disso. Ganhou 5 pontos percentuais de share entre 2017 e 2021, segundo análise do Bradesco BBI. Consolidou-se como a segunda maior cervejaria do Brasil (21% do mercado) e diminuiu a ainda longa distância da líder Ambev (cerca de 60%).

Clash’d, primeiro refrigerante com ingredientes naturais feito pelo processo de fermentação brewing (Crédito:Divulgação)

Cerveja na hora do almoço

Um plano de avanço sóbrio, como propõe sua cerveja zero álcool, personagem da terceira transformação citada pelo executivo. Até 2018, esse segmento vinha de ressaca – com o perdão do trocadilho inverso – e inclusive era motivo de piada pelos mais tradicionalistas e fãs de uma ‘gelada’.

O sabor de uma cerveja considerada sem álcool ou com baixo teor alcoólico pouco tinha a ver com a bebida em sua receita convencional. De 2019 para cá, esse nicho quase triplicou, segundo dados do Sindicerv, passando de 140 milhões de litros ao ano para 390 milhões de litros em 2022. E, de acordo com projeção da Euromonitor, deverá alcançar 480 milhões de litros neste ano, alta de 24%. “E hoje a Heineken 0,0% é a mais vendida do Brasil”, disse Giamellaro. “Com ela mudamos a ocasião de cerveja. As pessoas estão tomando cerveja na hora do almoço.”

Essas transformações fazem parte da visão da empresa de construir conexões diretas com os clientes (varejos, bares e restaurantes) e consumidores. No relatório anual de 2022, a Heineken aponta o fortalecimento de iniciativas “que expressam nossa personalidade como a marca mais mente aberta do mundo”.

O objetivo é ser até 2030 a principal marca de cerveja de escolha para a Geração Z (nascidos entre a metade dos anos 90 e a primeira década dos anos 2000). De acordo com a pesquisa global Kantar BrandZ 2022, a Heineken foi a que mais cresceu em valor entre as principais marcas de álcool, impulsionada por “inovações e criatividade”.

Para Marco Quintarelli, consultor de varejo da Azo Negócios, a companhia lidera a premiunização, dentro dos valores que jovens querem. “É referência de produto de excelente qualidade, que gera status, e investe para pegar a nova geração, que tem esse conceito”, disse o especialista.

Maior produção e portfólio mais amplo

Os investimentos maciços da Heineken no Brasil foram intensificados a partir de 2017, quando foram aplicados R$ 2,2 bilhões para a aquisição da Brasil Kirin. Essa compra tornou a companhia holandesa a segunda maior cervejaria do Brasil. Depois vieram mais R$ 865 milhões para ampliação da unidade fabril de Ponta Grossa (PR) e R$ 320 milhões para expansão e ampliação as plantas de Jacareí (SP) e Araraquara (SP).

Outros R$ 1,8 bilhão foram anunciados para construção de uma nova cervejaria que, a princípio, seria em São Leopoldo (MG). Mas, para preservação ambiental e arqueológica da região, o projeto foi transferido para a cidade também mineira de Passos. Depois de análise técnica, licenciamentos e trabalho social e ambiental junto à comunidade local, as obras começaram há dois meses. A fase é de terraplanagem. A expectativa é que até meados de 2025 os consumidores bebam as primeiras cervejas Heineken oriundas da nova planta, que será a 15ª da empresa no País — das 14 unidades produtivas atuais, há 12 cervejarias e duas microcervejarias.

Já o investimento mais recente, anunciado no início de maio, é de R$ 1,5 bilhão para as cervejarias de Igarassu (PE) e Alagoinhas (BA). A aplicação feita em território pernambucano vai triplicar a capacidade produtiva das marcas Amstel e Devassa, além de incrementar em 45% a operação de linhas de embalagens retornáveis. E os recursos enviados à cervejaria do município baiano serão para ampliar em 60% a produção da marca Heineken no País.

Aliado à ampliação da capacidade produtiva está o incremento do portfólio. E uma das novidades da Heineken para avançar no mercado e, de quebra, desenvolver melhor a retornabilidade e a reciclagem de vidro é a longe neck retornável. Inicialmente, a garrafinha está disponível em bares e restaurantes do sul do País. A tendência é espalhar a novidade para outras regiões no segundo semestre.

Além das cervejas — são da Heineken as marcas Amstel, Amstel Ultra, Baden Baden, Bavaria, Blue Moon, Devassa, Eisenbahn, Glacial, Kaiser, Lagunitas, Schin e Tiger —, a companhia holandesa possui ainda uma linha de não alcoólicos que incluem o refrigerante FYS, a Itubaína, a Água Schin, a Schin Tônica, a Viva Schin e o suco Skinka.

Em abril, inaugurou uma categoria no mercado brasileiro com o Clash’d, primeiro refrigerante com ingredientes naturais feito pelo processo de fermentação brewing, comum na produção cervejeira, para obter uma bebida maltada com sabor e aroma mais marcantes e sofisticados.

O objetivo é desenvolver e liderar o segmento de refrigerantes premium no Brasil. A bebida é uma marca global com desenvolvimento e lançamento em primeira mão no País, produzida na cervejaria de Itu (SP). Chega aos principais pontos de venda de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná na versão lata de 269 ml. Agora deu para entender melhor por que Bill Gates colocou seu dinheiro na Heineken?

Entrevista
Mauricio Giamellaro,presidente da Heineken Brasil

“Investimos em um ambiente Agressivo”

Qual o atual momento da companhia no País?
Estamos vivendo um bom momento. É muito bom trabalhar numa categoria em que a celebração faz parte do nosso valor. Temos nos divertido e celebrado essa história de dez anos de Brasil com muito sucesso. Temos orgulho de ver que transformamos o mercado de cerveja no País. Eu trabalhei com produtos de limpeza, suco, queijo, no setor farmacêutico, e posso afirmar que são poucas categorias em que o vice-líder muda o segmento. Fizemos o líder vir atrás da gente, principalmente quando falamos da melhoria da qualidade da cerveja.

Qual o diferencial?
Mais do ‘o que a gente faz’, é ‘como a gente faz’. Fazemos com respeito a nossos parceiros. A gente nunca entra como competidor dos nossos parceiros, como fazem outros players, pois são eles que vendem. E a gente respeita o consumidor ao oferecer um produto de qualidade.

Como trabalha o propósito de cada marca?
Começamos uma jornada de felicidade. Gente feliz brinda mais. A Lagunitas tem a causa de proteção dos animais. Devassa, inclusão racial, cultura local do Nordeste. Amstel, diversidade, de ser o que quiser. Heineken é energia verde.

O mercado está estável para novas aquisições ou pode haver movimentação até por problemas de outras cervejarias (o Grupo Petrópolis entrou em Recuperação Judicial)?
Não comentamos crescimento inorgânico. Mas nossa estratégia é crescer organicamente. Estamos avançando em capacidade reprimida. Investimos em um ambiente competitivo, que não é dos mais saudáveis no Brasil e, sendo elegante, o ambiente é agressivo.