Entrevista

Frineia Rezende, diretora da The Nature Conservancy

Brasil perde milhões de dólares com biopirataria

Claudio Gatti

Brasil perde milhões de dólares com biopirataria

Mesmo com uma das mais robustas legislações sobre o uso da biodiversidade para fins comerciais, a dificuldade na fiscalização impede que o País se beneficie da comercialização de produtos da floresta

Lana Pinheiro
Edição 18/05/2023 - nº 1324

Há seis meses Frineia Rezende assumiu a diretoria executiva da The Nature Conservancy (TNC), uma das mais relevantes organizações globais voltadas à proteção da sociobiodiversidade. Em sua bagagem, experiência no mundo corporativo, como a passagem de dez anos pelo Grupo Votorantim, como articuladora setorial, como presidente do Biodiversity and Biotechnology Working Group (CTBIO), além de organizações como Instituto Akatu e Instituto Conexões Sustentáveis. Agora, é a primeira mulher a assumir a mais alta posição da entidade que completa 35 anos e comandará uma agenda que inclui mudanças climáticas, povos originários e recursos hídricos. O objetivo final, segundo ela, é “garantir a segurança hídrica e alimentar do planeta ao mesmo tempo em que fomentamos alternativas de desenvolvimento”.

DINHEIRO — Observamos uma guerra entre grileiros e povos indígenas que acaba contribuindo para a narrativa de que índio não produz riqueza. Como você enxerga o problema e como a The Nature Conservancy atua?
Frineia Rezende — O problema da grilagem realmente aumentou muito nos últimos anos e será um grande desafio resolvê-lo. Mas acreditamos que vamos. Por parte da TNC o escopo que temos de trabalho com os povos indígenas e comunidades tradicionais é dar mais governança a eles. É contribuir para que estejam de fato organizados e tenham um plano de gestão para alavancar várias frentes econômica, principalmente as ligadas à sociobiodiversidade.

De forma prática, como vocês atuam?
O plano de gestão é montado por eles. Eles são os protagonistas. Nós entramos com projetos de capacitação, de instrumentalização, de comunicação. Fomentamos as condições para que se posicionem em relação às necessidades que enxergam dentro dos próprios territórios e que avancem em conhecimento e habilidade para que consigam acessar recursos financeiros por eles mesmos.

Esse desenvolvimento econômico tem potencial para que o Brasil passe a ver valor na floresta em pé?
Quando olhamos para esses territórios, temos de olhar para a teoria da mudança. Ou seja, ao trabalhar aquele local é importante pensar quais são as estratégias que precisam ser criadas para provocar uma mudança positiva. Então junto ao trabalho com comunidades trazemos o foco no combate às mudanças climáticas e com ele os projetos de restauração. Além de restaurar os territórios, é preciso evitar o desmatamento, por isso é preciso incluir as cadeias produtivas como soja e gado. Dessa forma, trabalhamos também a questão da água. É um sistema que tem como objetivo garantir a segurança hídrica e alimentar do planeta ao mesmo tempo em que fomentamos alternativas de desenvolvimento, como a bioeconomia.

A bioeconomia traz para o jogo novos agentes como produtores. Caso dos indígenas e quilombolas. O sistema vigente permitirá essa transferência de renda?
De fato esse é um grande desafio. Temos também outra questão importante: hoje quando falamos em bioeconomia pensamos majoritariamente em açaí, cacau e café, que já são consideradas, exceção do açaí, commodities. Precisamos ter cuidado para agregar mais valor aos bioativos e assim garantir que os recursos financeiros que entrem remunerem bem o início da cadeia. É preciso trazer tecnologia e ampliar as espécies da biodiversidade sejam elas da Amazônia, do Cerrado ou da Mata Atlântica.

Quais são os limites legais para o desenvolvimento econômico de comunidades indígenas?
Depende do tipo de território. Quando se fala de Terra Indígena dentro do que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) há permissões específicas para o uso do solo. Por isso, a Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI) é importante. Entre outros pontos, é ali que estará registrado qual a vocação daquele território. Mas temos duas situações diferentes. O uso de solo para subsistência, mesmo com excedentes que permitam trocas para aquisição de qualquer coisa incluindo bens materiais, e uma produção em larga escala, que explora comercialmente a terra, os povos e que muda a paisagem. O foco é no uso sustentável do solo, na qualidade de vida daquelas comunidades e na manutenção da biodiversidade.

Como está o engajamento governamental no desenvolvimento da bioeconomia amazônica?
O que vemos hoje no corpo do governo federal são muitas pessoas que vieram de processos e de instituições que olham para esses sistemas.

O que falta?
Um dos aspectos é a abertura de mercados. O outro, é fazer um plano estratégico. Precisamos saber quais são as espécies com maior potencial comercial, desenvolver a cadeia e criar mecanismos para uma remuneração justa para todos. Mas temos que dizer que somos um dos poucos países do mundo que tem uma legislação, a Lei da Biodiversidade, que define como você acessa recursos genéticos e como reparte o benefício.

Outra frente da TNC é a agricultura familiar. Quais os desafios que estão atacando?
O problema que o País precisa enfrentar na agricultura familiar é sobre como fomentar essa produção para que seja minimamente suficiente para manter aquela família com um certo excedente. Um dos maiores desafios é o acesso a crédito. Uma família do interior da Amazônia não consegue acessar o recurso financeiro no banco. Ou porque não têm garantia da terra ou porque estão endividadas. Precisamos ajudá-las a ter capital de giro e dar assistência técnica.

Mas e o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) que sai governo, entra governo e todos dizem que ele é o foco?
Apenas 2% dos que acessam o crédito são da agricultura familiar.

Sem garantias para as instituições financeiras, qual seria a solução? Doações?
Uma alternativa são os fundos garantidores. Eles viabilizam o crédito e trabalham com as comunidades em educação financeira, em capacitação para que o recurso volte. Por isso, são criados com parte de investimento e parte com filantropia catalíticas, onde o doador espera o retorno, mas que não é para ele, é para o próprio fundo para que continue existindo.

A questão do crédito esbarra em questões fundiárias. Você espera avanços nessa área?
Essa é uma questão urgente. Só que temos um cenário complexo que é a demora para a nomeação de várias posições. Estamos esperando.

No Brasil, o que temos são leis. A questão é: elas são cumpridas?
Temos várias indústrias hoje que fazem uso da biodiversidade e que, sim, as cumprem. Mas temos casos como o pau-rosa [madeira da Amazônia] que foi usado pela Chanel no perfume Nº 5 sem que o Brasil recebesse nenhum benefício. Pela lei brasileira, 1% da comercialização de produtos da bioeconomia deveria ser direcionado a um fundo para garantir algum retorno às populações detentoras de conhecimento tradicional.

As formas de benefício são estipuladas?
Precisamos de definições mais claras de como o governo acessa esse fundo e como o reparte é feito. Mas hoje temos pessoas no governo que não só entendem como esses mecanismos funcionam, como também podem fazê-lo rodar de fato.

Como funcionam as patentes de bioativos?
Ninguém pode patentear nada relacionado a acesso a recursos genéticos diretamente. Vamos pegar uma fruta como a jabuticaba, espécie da Mata Atlântica. Se há um produto feito com ela sem que haja algum incremento de inovação tecnológica, não é possível patentear, porque a jabuticaba é patrimônio da União, do Brasil. O fato de qualquer empresa ter desenvolvido um produto a partir do conhecimento tradicional, do uso de uma espécie, não dá a ela a permissão de patenteá-lo. Agora, se o princípio ativo estiver dentro de uma fórmula, por lei essa fórmula pode ser patenteada.

Há algum banco de dados com esses conhecimentos descritos como fonte de consulta?
Quase tudo está mapeado. Mas o que muitas empresas estrangeiras faziam era mandar representantes para as comunidades e fazer biopirataria. Simulavam doenças ou outras situações para que indígenas e ribeirinhos apresentassem a eles os produtos da natureza que usavam para a finalidade que queriam. Eles pegavam uma amostra, voltavam a seus países, faziam a identificação e a extração do princípio ativo e o reproduziam em medicamentos, cosméticos. Ainda hoje o Brasil perde milhões de dólares com a biopirataria.

Temos instrumentos que permitam fiscalizar essas biopiratarias?
Geralmente só por denúncia.