Presidente emparedado: como Lula acabou refém do Congresso
Presidente encara reveses no Parlamento e monta plano de reação: liberar recursos, judicializar e tomar as rédeas da negociação política
Por Paula Cristina
É comum ouvir de figurões que transitam há décadas pelo Congresso que não há vácuo na política, e sempre que existe espaço vazio alguém vai e ocupa. E isso sempre foi assim. O incomum nessa quadra da história é que seja o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, calejado na política, duas vezes presidente e um histórico de bom negociador, quem tenha deixado um lugar não preenchido à espera de usurpação. O governo foi tomado por uma letargia difícil de compreender. Não distribuiu benesses aos rodos, como fizeram as duas últimas gestões, mas também não reage, como aconteceu na última vez que o PT passou pelo Palácio da Alvorada. Uma paralisia que seria natural para um presidente estreante, mas não para Lula.
E toda essa falta de ação não custa só capital político. Custa dinheiro. Dia 31 de maio o governo liberou R$ 1,7 bilhão em emendas individuais — a maior cifra em um único dia e somando chega a R$ 4,5 bilhões até agora. Tudo isso enquanto o Legislativo dá indícios de que seguirá agenda própria, em mais um governo parlamentarista no armário.
“Até agora a gente estava mandando a visão de governo que nós queríamos. Então a comissão no Congresso resolveu mexer na estrutura de governo, coisa que deveria ser quase impossível de mexer”
Lula, 26 de maio
“Agora começou o jogo. Vamos jogar, conversar com o Congresso e vamos fazer governança daquilo que a gente precisa fazer”
Lula, 30 de maio
“Não sei quando vão votar a PL das Fake News. Procuro não me meter muito na questão da Câmara, porque conversar com um já é difícil, imagine conversar com 513. Deixa a Câmera decidir a hora que vai votar. E vamos aguardar o resultado”
Lula, 31 de maio
Questionado sobre a relação com a Câmara e o Senado, Lula disse que “o jogo está começando agora”. Em um evento na Fiesp, o presidente afirmou não haver lugar para desespero e a governança que precisa ser realizada no Legislativo ele fará pessoalmente.
Mas os fatos não têm sido assim tão otimistas com o petista. O presidente da Câmara, Arthur Lira, falou publicamente sobre a falta de envolvimento de Lula nas negociações com o Congresso. Deu o recado de que o Parlamento vem ganhando protagonismo no andar da República e que era preciso aceitar essas mudanças.
Deu recados. E culpou a articulação capenga do governo à má gestão dos ministros Rui Costa (Casa Civil) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais) na articulação.
E o que Lira tem feito já poderia ter sido mapeado por qualquer um com olhar atento aos meandros de Brasília. Testar o presidente, forçar a própria agenda e assim obter mais poder político.
Ele sabe que tem nas mãos textos ideologicamente caros ao PT e à esquerda, além do poder de facilitar ou prejudicar a economia, a depender do avanço das reformas estruturantes.
Com tudo isso em jogo, Lula já deveria estar à frente da negociação. Mas ensaia começar só agora. O primeiro passo foi na sexta-feira (26) quando um churrasco no Palácio da Alvorada uniu ministros e deputados da base governista. Quem estava por lá disse que o tema central foi a busca por uma retórica única para avançar nas negociações do Congresso. “O presidente sabia que não teria vida fácil lá [na Câmara]. Esperou para ver o andamento e agora vai estar mais presente”, disse um ministro, em condição de anonimato.
1,7 bi de reais foi o valor liberado por lula em 31 de maio para emendas. No ano já são R$ 4,5 bilhões para esse fim.
Na nova etapa de reaproximação do Legislativo, o governo Lula deve trabalhar em algumas frentes distintas. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que foi elogiado por Lira pela negociação do Arcabouço, deve ganhar protagonismo também na Reforma Tributária e nas primeiras discussões sobre imposto de renda, tributação de lucros e dividendos, grandes fortunas, a reoneração da cadeia produtiva, Refis e o crédito suplementar.
“Não há uma parede entre o Executivo e o Legislativo. Só uma rua nos afasta. Estou disposto a discutir cada etapa do processo”, disse Haddad à DINHEIRO em evento na capital paulista.
Também haverá um reforço na comunicação dentro da base governista, que tem se mostrado frustrada com os rumos da gestão.
O PSOL, por exemplo, aceitou votar junto do governo no Arcabouço, mas se disse surpreendido com o baixo envolvimento do governo para reverter o movimento da Câmara de diminuir a autonomia do Ministério dos Povos Indígenas.
PSB e PDT também discutem internamente seus limites de apoio. E eles têm um argumento bastante relevante para isso.
O União Brasil, que não vota com o governo, tem três ministérios e não é cobrado pelo apoio, o que tem gerado instafisfação também entre políticos tradicionais do Partido dos Trabalhadores.
O deputado Lindbergh Farias (PT/RJ) é um deles. “Não podemos ter um governo de subserviência, que é diferente de diálogo e contrução. Diferente de coalizão”, disse.
“Não podemos fechar todo e qualquer acordo apenas para aprovar textos. Esse governo precisa dar certo, ou aumentamos a chance de o fascismo voltar.”
Deputado Lindbergh Farias (PT/RJ)
Outra frente, envolvendo ministros como Flávio Dino (Justiça), Anielle Franco (Igualdade Racial) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas), vai ao Supremo questionar algumas decisões da Câmara.
A primeira será o Marco Temporal, que limita o poder retroativo de demarcação de terras indígenas a 1988. Leandro Maciel Soares Pinto, advogado constitucionalista e consultor da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, afirmou que há grandes chances de o Supremo barrar a lei. “O texto fere o direito constitucional à existência, permanência e sobrevivência dos povos originários”, disse.
Se confirmado, o governo ganhará a queda de braço com a ajuda do Judiciário, o que resultará na criação de uma narrativa da extrema direita de que há algum tipo de “ditadura da toga” agindo em confluência com o governo, ainda que o primeiro sinal de que o Marco Temporal seria inconstitucional foi dado pela ministra do Supremo Cármen Lúcia ao governo Temer, em 2017.
Dentro do governo, a voz mais pesada contra o Legisltivo tem sido a de Flávio Dino. Em evento na capital paulista, afirmou que o Congresso passa de seus limites constitucionais e assume competências que não são suas. “Ou discutimos verdadeirmante o semiparlamentarismo ou abraçamos de verdade o presidencialismo.”
Do outro lado da Praça
A questão do parlamentarismo enrustido, que cresce desde a chegada de Eduardo Cunha à presidência da Câmara, em 2015, é algo que afetaria qualquer partido ou presidente que assumisse a cadeira nesta gestão.
Segundo o Datafolha, em setembro de 2022, 69% dos eleitores não sabiam em quem votar para os cargos do Legislativo, ainda que 85% já tivessem decido o voto para presidente. Dos indecisos para parlamentares, 75% diziam se importar menos com o partido e mais com a pessoa na hora de escolher um candidato.
O resultado foi um aumento (68% ante 62% ) de políticos “liberais na economia, conservadores nos costumes”. O número de antipetistas também subiu, de 58% na última legislatura para 65% nesta. Com isso, Lira ganhou força para usurpar atribuições do Executivo, como determinar os ministérios. Essa ameaça de Lira, inclusive, foi contornada por Lula com liberação de emendas parlamentares.
75% dos eleitores indecisos em 2022 não ligavam muito para o partido dos candidatos na hora de escolher um deputado
Não há literatura política que justifique, sem ruptura com o presidencialismo, a escalada de Lira. O Brasil, que já rejeitou o parlamentarismo duas vezes com plebiscito, assiste a um chefe do Legislativo (com 219,4 mil votos em um estado em que Lula ganhou com ampla maioria) concentrar cada vez mais poder.
E isso só acontece porque ele soube aproveitar o vácuo deixado pelos últimos presidentes, e que Lula deveria preencher.