ESG

Governo Lula mergulha em um retrocesso ambiental

Às vésperas do Dia do Meio Ambiente, governo sofre série de derrotas na agenda que poderia tornar o Brasil protagonista global da economia verde. Com ministérios esvaziados, direitos de indígenas cerceados e penhora da gestão dos recursos hídricos, o País corre o risco de manter aos olhos do mundo a imagem de vilão do clima

Crédito: Pedro Ladeira

Aprovação do marco temporal que restringe a demarcação de terras indígenas às regiões ocupadas em 1988 desagradou povos originários e ambientalistas (Crédito: Pedro Ladeira)

Por Lana Pinheiro

Uma luta entre forças anti e pró ambientalistas na Praça dos Três Poderes de Brasília marcou a semana que antecedeu o Dia do Meio Ambiente (5 de junho), deixando claro que falta ao Brasil um entendimento da dimensão da economia verde e do papel que o País quer ocupar nesse modelo. Ao aprovar o Marco Temporal — que demarca as terras indígenas ao que eram em 1988 — e reduzir as atribuições dos ministérios do Meio Ambiente e Povos Originários, a Câmara dos Deputados, presidida por Arthur Lira, usou a agenda como retaliação política imprimindo derrotas a uma das mais caras bandeiras do governo Lula.

Em sua miopia, porém, deixou de olhar com racionalidade o quanto é lucrativo preservar ecossistemas naturais. Segundo levantamento da Oxford Economics, consultoria independente criada em 1981 pela faculdade de administração da universidade homônima, a economia verde pode valer US$ 10 trilhões até 2050 — mais de seis vezes o PIB brasileiro.

US$10 trilhões é a estimativa do valor projetado para a economia verde até 2050 segundo a consultoria Oxford Economics

Não olhar para dados assim deve custar caro. Para o mundo, o enfraquecimento das políticas ambientais brasileiras pode colocar em xeque a luta contra a mudança climática, já que abre as porteiras ao aumento do desmatamento da Amazônia — que de agosto de 2022 a abril de 2023 perdeu 5.936 km², maior área para o período da série histórica iniciada em 2015.

Para o Brasil, os prejuízos viriam não só pela dificuldade de acessar recursos vinculados à sustentabilidade como pela possível perda de cifras que já estão na mesa.

Na opinião de Raul do Valle, diretor de Políticas Públicas do WWF-Brasil, a decisão do parlamento de colocar obstáculos ao Executivo no cumprimento de seu papel de implementar políticas ambientais pode levar à perda de relevância do País nos acordos internacionais.

“Estamos colocando em risco a viabilidade da entrada do Brasil na OCDE e de finalização de acordos comerciais com a União Europeia.”
Raul do Valle, diretor de Políticas Públicas do WWF-Brasil

Recente decisão do bloco europeu de fechar a porta para importação de produtos de áreas desmatadas após dezembro de 2020 pode interromper as exportações de commodities agrícolas como soja, café e madeira do Brasil para a região. Os três produtos são os que têm maior participação na balança comercial bilateral: 8,8%; 6,4% e 6%, respectivamente.

No Brasil, a Política Nacional dos Resíduos Sólidos trouxe avanços para a estruturação da economia circular e engajamento do setor na agenda (Crédito:Istockphoto)

Além da provável queda de receita para o agronegócio brasileiro, há a questão reputacional. Para o especialista em investimentos ESG Fabio Alperowitch, sócio da Fama Investimentos, é lamentável que esses movimentos não estejam circunscritos à oposição, mas também partam de membros alinhados ao governo.

Além da aprovação da Medida Provisória que provoca o esvaziamento das atribuições dos ministérios do Meio Ambiente e Povos Originários (MP 1154/23) e do Marco Temporal de demarcação de terras indígenas (PL 490/07), Alperowitch vê com preocupação a dispensa da licença ambiental para gasodutos na Mata Atlântica. “São um duro golpe na imagem de ambientalista que o governo pretendia construir”, disse.

Rui Altieri, presidente da CCEE: “O hidrogênio verde é o combustível do futuro, mas há desafios de regulamentação e escala” (Crédito:Solange Macedo)

A opinião é compartilhada por Beto Mesquita, da Coalizão Brasil Clima. Para ele, o sinal dado por Brasília à comunidade internacional é de instabilidade institucional e de insegurança jurídica. “Decisões como a de levar o Cadastro Ambiental Rural (CRA) para o Ministério da Gestão pode paralisar a regularização ambiental da agricultura, e se tornar um tiro no pé do produtor”, afirmou.

O especialista diz que o setor produtivo profissional sairá perdendo. “As consequências serão ruins para empresários sérios. Os únicos que ganharão serão os criminosos ambientais e os competidores do agro nacional”.

Esvaziamento do Ministério do Meio Ambiente aumenta receio de escalada do desmatamento da Amazônia e Mata Atlântica (Crédito:istockphoto)

Saneamento

Enquanto a batalha política segue em Brasília, o País sofre com a falta crônica de investimentos em saneamento básico, acesso à água e gestão de resíduos. Para um governo que se elegeu com a bandeira de promover políticas sociais e ambientais, as alterações propostas pelo Planalto ao Marco do Saneamento surpreenderam o mercado.

Entre as elas estão novas regras que permitem empresas estatais prestarem serviços sem licitação e a alteração do texto que previa que as companhias responsáveis pelos atuais contratos deveriam comprovar capacidade econômico-financeira para seguir com as atividades.

Mesmo que a Câmara dos Deputados tenha barrado a iniciativa do Executivo, essa insegurança jurídica, segundo o CEO da Unipar, Maurício Russomanno, “pode comprometer os investimentos no setor e a meta do Brasil de garantir atendimento de 99% da população com água potável e de 90%, com tratamento de esgotos até 2033”.

Hoje, 44,2% da população brasileira não têm acesso à coleta de esgoto e cerca de 15% não é abastecida com água potável. A empresa, porém, segue firme no seu plano individual de investimento com R$ 100 milhões aplicados na fábrica de Santo André (SP) e outros R$ 250 milhões na unidade de Camaçari (BA) — ambas produtoras de insumos para a indústria de saneamento. “Continuaremos investindo, mas lógico que à medida que os projetos e contratos escorreguem ao longo dos anos, vamos modulando o momento de aplicar novos recursos.”

Marina Grossi, presidente do CEBDS: “O carbono pode ser a nova commodity do agronegócio nacional ” (Crédito:Divulgação)

Junto ao esgoto, o País enfrenta o desafio da água. Para o diretor em Políticas Públicas do WWF-Brasil, Raul do Valle, aceitar o texto que retira a responsabilidade da gestão hídrica do Ministério do Meio Ambiente para colocá-la sob a pasta do Desenvolvimento Regional (com a MP 1154/23) equivale a entregar a segurança dos ovos à raposa.

“Os recursos hídricos interessam a diversos setores — agricultura, indústria, energia —, por isso é importante um árbitro isento para definir as políticas setoriais, e ele seria o MMA”, afirmou. Na nova dinâmica, a água pode ser uma moeda de troca. “É uma situação absurda.”

Gestão dos recursos hídricos passa a ser atribuição do Ministério do Desenvolvimento Regional e aumenta a preocupação com acesso à água potável pela população (Crédito:Istockphoto)

Ex-presidente da Sabesp, Gesner Oliveira, diz que água e esgoto deveriam ser tratados como agenda única. “O saneamento precisa entrar na era da economia circular sem uma cisão entre um e outro, ambos são água com diferentes características”.

Segundo o executivo, tecnologias para transformar o esgoto em água reutilizável já existem no Brasil e podem reduzir drasticamente as perdas de 40% registradas nas companhias de abastecimento. “A reciclagem da água precisa entrar na pauta das políticas públicas.”

Resíduos

Prova de que quando querem o Executivo e o Legislativo conseguem consenso é a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Instituída em agosto de 2010, ela trouxe ao País uma série de inovações para a gestão e gerenciamento do que antes era tratado como lixo. Para o head de Economia Circular da Ambipar, Guilherme Brammer, a legislação permitiu progressos consideráveis. “Conseguimos avançar em logística reversa e engajar empresas em acordos setoriais robustos”, afirmou.

Um dos exemplos mais contundentes é o de latas de alumínio. Dados da Recicla Latas, obtidos com o apoio da Associação Brasileira do Alumínio (Abal) e da Associação Brasileira dos Fabricantes de Latas de Alumínio (Abralatas), indicam que no ano passado os recicladores processaram 390,2 mil toneladas de sucata de latinhas, montante equivalente às 31,85 bilhões de unidades comercializadas pelos fabricantes de latas em 2022. Um aproveitamento de 100%.

Os problemas no Brasil, porém, ainda são bastante significativos. Segundo dados da International Solid Waste Association (ISWA), somente 4% dos materiais recicláveis são processados no País.

Um dos grandes obstáculos para Brammer, da Ambipar, é o tratamento tributário dado aos materiais reciclados que é o mesmo do material virgem. Outro é a falta de infraestrutura. “Poucas cidades brasileiras possuem a coleta seletiva, o que torna a implementação da PNRS bastante complexa em sua total amplitude”, afirmou.

Algumas regiões e empresas têm resolvido essa ausência da autoridade pública com investimentos em cooperativas de catadores e recicladores. “Eles representam 90% da coleta de resíduos do País.” E, mesmo com o avanço na organização da economia circular, há mais dois agentes que desafiam a gestão de resíduos.

O primeiro é a indústria.

“Enquanto os executivos forem cobrados e remunerados por resultados de uma economia linear, será muito difícil dar escala à reciclagem”
Guilherme Brammer, head de Economia Circular da Ambipar

O outro é o consumidor. “Precisamos que a agenda ambiental entre na grade curricular das crianças. Só por meio da educação teremos a transformação necessária.”

Energia

P or mais que as ações humanas atrapalhem, é inegável que a natureza deu ao Brasil algumas vantagens competitivas: água, sol e vento suficientes para viabilizar uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, com cerca de 90% de fonte renovável. Mas até essa alegria pode durar pouco.

Segundo o estudo Programa de Transição Energética, publicado em conjunto pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e o Centro de Economia Energética e Ambiental (Cenergia), a transição energética brasileira enfrentará obstáculos que não estão no centro de políticas públicas.

A tendência é de crescimento na demanda por energia e ela traz a necessidade de atualizar e até criar marcos regulatórios. Sem contar o fato de que novas tecnologias e infraestrutura ainda demandam desenvolvimento, escala e competitividade.

Diante da leniência institucional, cabe a um coletivo setorial pressionar por avanços. Muitos dos pontos citados pelo estudo já estão sendo tratados pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), presidida por Rui Altieri. De acordo com a entidade, o consumo de energia elétrica no Brasil para o quinquênio 2023-2027 deve crescer a taxas anuais de 3,2%, atingindo 81.540 MW médios. Diante do cenário, a preocupação de Altieri é com os investimentos necessários.

“Para acelerar o processo de transição energética devíamos olhar para o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (Proinfa), que em 2002 beneficiou a produção de biomassa e de Pequenas Centrais Hidrelétricas”, disse. Nesta reedição, porém, o foco, para o presidente da entidade, deveria estar no aumento da competitividade do hidrogênio verde, alternativa sustentável que, segundo a CCEE, deve ser o combustível do futuro. O caminho, porém, esbarra nas regulamentações. “Esse é um problema não só do Brasil, mas do mundo.”

74% é a participação do uso da terra e da agricultura nas emissões de gases de efeito estufa do País

Carbono

Avançar na transição energética será fundamental para a descarbonização do planeta, que por sua vez é imprescindível para que a temperatura global fique abaixo de 2ºC acima dos níveis pré-industriais, conforme estabeleceu o Acordo de Paris (2015). No Brasil, a energia representa cerca de 18% das emissões de gases de efeito estufa.

A parte majoritária, contudo, vem do uso da terra e da agropecuária, que juntas participam com quase 74%. Para que a descarbonização seja possível, entidades como o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) batalham pela regulamentação do mercado de carbono brasileiro, o que transformaria a proteção ambiental em uma linha de receita e não de despesa para os produtores rurais. Presidente da entidade, Marina Grossi afirmou que “o carbono pode ser a nova commodity brasileira”.

Para isso, meio caminho está andado. Já funciona no País o mercado voluntário, no qual empresas estabelecem suas metas de emissão e compensação ou de sequestro de carbono e transacionam os créditos no mercado. Em maio de 2022, o governo Jair Bolsonaro promulgou um decreto que estipulava a criação do modelo compulsório, mas o documento deve ser revogado pela atual administração.

Segundo Breno Rates, diretor de Projetos de Carbono da WayCarbon, o que parece um retrocesso pode ser um passo à frente. Isso porque ganha força o Projeto de Lei 528, que separa o que é o mercado regulado do voluntário. “O PL é mais robusto e reconhece as complementariedades de ambos”, afirmou.

Para Rates, o mercado voluntário tem, por exemplo, a vantagem de impulsionar a orientação do Science Based Target, segundo o qual as empresas precisam incentivar reduções de emissão fora de suas cadeias de valor. “Só assim conseguiremos manter a temperatura global nos termos do definido no Acordo de Paris.”

O que falta, como nos demais tópicos da agenda, é o consenso político.