O falso dilema entre o censo e a LGPD
Por Raphael Vicente
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) foi sem dúvidas um avanço na legislação brasileira. Derivada principalmente da experiência europeia, ainda é recente, com lacunas e, por vezes, imprecisa — o que tem causado algumas dificuldades de interpretação.
Um exemplo disso é que a LGPD considera a origem racial ou étnica como dado sensível, mas não fala nada sobre cor. Ocorre que cor e raça são informações públicas, segundo a própria Lei dos Registro Públicos (Lei 6.015/73), balizadoras das ações afirmativas, qualificadoras constantes da certidão de nascimento e de óbito, lavradas em cartório e podendo ser consultadas em qualquer tempo. Além disso, elas compõem as estatísticas oficiais do Censo brasileiro, para o qual os pesquisadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) questionam os entrevistados sobre sua cor e raça.
A importância da cor e raça na produção de políticas públicas para o mercado de trabalho é tamanha que em 1999, o Ministério do Trabalho e Emprego, incluiu a informação sobre raça e cor dos empregados nos formulários da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
Por vezes, é bem verdade, não se faz necessário esforço algum para diagnosticar o óbvio, caso da ausência de pessoas negras nos cargos de liderança. O censo é mais do que um simples diagnóstico quantitativo. É a chave para que se compreenda a distribuição e a curva de ascensão dos profissionais negros, bem como para entendermos qual o ponto de estrangulamento nessa curva, algo essencial ao planejamento das ações de intervenção de médio e longo prazo além de vital para o gerenciamento das métricas e resultados dos programas de diversidade e inclusão.
A LGPD não é uma barreira à realização do censo ou de qualquer programa de ações afirmativas em empresas comprometidas com a diversidade racial. Inclusive várias já superaram esse aparente desafio. Mas, para algumas, o falso dilema se tornou desculpa conveniente
Principalmente a partir de 2015, com a agenda da diversidade racial ganhando força nas empresas, o censo ganhou destaque. Entretanto, muitos departamentos jurídicos entendiam que pesquisas que questionassem a cor ou raça dos colaboradores seriam constrangedoras e indevidas. Essa compreensão obviamente era um equívoco, sendo que aos poucos esse entendimento foi sendo superado e, uma vez dissipado, a adoção do censo ganhou força nas empresas. Porém, em 2018, com o surgimento da LGPD a discussão ressuscitou com outra roupagem, a dos ‘dados sensíveis’.
A questão ganhou tamanha relevância que a Lei 14.553, de 2023, determinou que os empregadores tanto do setor público quanto do privado devem incluir nos registros administrativos um campo para que os empregados possam se classificar segundo o segmento étnico e racial a que pertencem. O trabalhador deve indicar sua raça nos seguintes formulários: admissão e demissão no emprego; acidente de trabalho; inscrição de segurados e dependentes no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS); pesquisas do IBGE; registro feito no Sistema Nacional de Emprego (Sine); e na Relação Anual de Informações Sociais (Rais).
Por fim, a própria LGPD apresenta as hipóteses de tratamento dos dados, excepcionalidades e formalidade, os quais em momento algum impede a realização do censo, apenas insere alguns requisitos adicionais plenamente exequíveis.
A LGPD não é uma barreira à realização do censo ou de qualquer programa de ações afirmativas em empresas comprometidas com a promoção da diversidade racial. Inclusive várias já superaram esse aparente desafio. Mas, para algumas, o falso dilema se tornou uma desculpa conveniente.
Raphael Vicente é Diretor-Geral da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial. Advogado, Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professor e diretor Geral da Universidade Zumbi dos Palmares