Fed: credibilidade versus recessão
Por Vitoria Saddi
No meu artigo anterior, procurei explicar que a recente inversão da curva de juros dos Estados Unidos é um argumento relevante que atuou como precursor dos períodos recessivos anteriores naquele país. Vale lembrar que a inversão da curva de juros — quando a taxa dos títulos de curto prazo excede a taxa dos títulos de longo prazo — é ocorrência rara. Levantei a hipótese de que talvez o Fed tenha interrompido o ciclo de alta como resposta à tal inversão.
Ou seja, se a curva invertida sinaliza recessão, a autoridade monetária poderia parar de subir juros e, mesmo assim, haveria desaceleração do crescimento e queda dos preços. Desta vez, discuto as razões da possível retomada da contração monetária que deve ocorrer a partir da próxima reunião do Fed, no fim do mês, e as implicações para a curva de juros.
Em tempos normais, as taxas longas devem ser maiores do que as curtas. Quando isso não ocorre, a curva de juros fica invertida. Para a curva passar de inclinação negativa para positiva é preciso que o Fed reduza os juros (nos EUA, Fed Funds Rate). Tal movimento ocorre se houver recessão na economia e a autoridade monetária decidir baixar as taxas curtas. Desde outubro de 2022, a inversão da curva vem sendo vista como precursor de recessão. Entretanto, o problema é que os dados não corroboram tal fato. O desemprego continua baixo, a inflação muito acima da meta implícita de 2%, e o PIB com perspectiva de crescimento de 2,5% em 2023.
A inversão da curva é fato inquestionável, pois é baseada nos spreads. Assim, se usarmos a diferença de yields do título de dez anos menos o de dois anos, ou de dez anos menos o de três meses, ou de dez anos menos a taxa Fed Funds, todas irão corroborar a inversão da curva de juros. Outro ponto é a taxa neutra. Ela é uma taxa de equilíbrio, pois não gera nem crescimento nem recessão. Tal taxa é objeto de debate, já que não é um dado observado. Ao contrário. Deve ser estimada levando em conta fatores estruturais da economia. Nos EUA, a estimativa oficial é do New York Fed, e a taxa neutra do segundo trimestre de 2023 é de 1,14%. Assim, para que a economia de fato entre num cenário recessivo seria preciso que a taxa real de juros de dez anos fosse superior à taxa neutra.
Desde 1982, em todos os períodos recessivos, a taxa real de juros de dez anos foi expressivamente superior à taxa de juros neutra. E hoje? A taxa real de juros de dez anos é inferior à taxa neutra. Ou seja, estamos num cenário de taxa real de juros próxima a zero que foi incapaz de trazer os spreads para um território positivo. A inversão da curva opera com defasagem de oito a dez meses para a recessão emergir. Isso posto, o Fed deverá retomar a alta de juros, pois pode ter percebido que precisa subir ainda mais a taxa básica para permitir que a taxa de juros real fique acima da neutra.
Um ponto a destacar é uma preocupação, ausente nas recessões passadas e muito presente agora, de conseguir promover a queda da inflação com impacto mínimo no nível de emprego e produto. O chamado ‘soft landing’. No passado, a principal preocupação do Fed era com a meta implícita de inflação. Nesse sentido, a autoridade monetária subia juros até que o desemprego ficasse acima de 5% e a inflação menor do que 2%. Não sei se isso é sinal dos tempos, onde todos têm opinião e querem ser ouvidos de modo democrático, ou se é um sinal de mudança dos rumos da política monetária. De todo modo, a pausa (da elevação da taxa básica americana) em junho e a eventual retomada do ritmo de alta em julho revela uma mudança ainda tímida na postura do Fed.
Seu oposto, o ‘hawkish’ Fed (postura mais agressiva) da era Greenspan acabou há 20 anos (ele presidiu o Fed de 1987 a 2006). Uma postura menos conservadora ganha espaço desde Ben Bernanke (2006-2014), passando por Janet Yellen (2014-2018) e mais recentemente com Jerome Powell (desde 2018). O tom menos conservador não implica em inflação mais alta, ou aumento do risco-país. Ao contrário.
Reflete que a autoridade monetária dos EUA possui mais credibilidade do que a dos demais BCs. E uma forma de medir essa maior credibilidade é usar expectativas de inflação para os próximos 12 meses. Em julho de 2022, elas atingiram 6,2% e vêm caindo até os 3,8% nas estimativas de junho de 2023. Isso é um sinal forte de que as expectativas estão ancoradas, sobretudo devido à credibilidade da autoridade monetária. É nesse contexto mais suave e menos traumático que iremos observar uma eventual recessão nos EUA.
Vitoria Saddi, PhD em economia pela University of Southern California, é estrategista da SM Futures. Atuou como economista-chefe da Roudini Global, do Citibank, da Queluz Assete e do Salomon Brothers