Artigo

País de malandrinhos

O que uma MP tem a nos ensinar sobre os meandros políticos — a fábula chamada harmonia entre os Três Poderes

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Edson Rossi: "Lula III já gralhou que prefere eles, os políticos, a técnicos" (Crédito: Divulgação)

Por Edson Rossi

Vamos lá festejar que uma agência de avaliação de risco nos classificou de BB- para BB e daqui a pouco para BB+ ou BBB XPTO. Fernando Haddad diz que isso é fruto da harmonia entre os Três Poderes. Fato. Pena que essa harmonia se manifeste na estética da verminose que traduz a civilização brasileira: corpos parasitários (nossas elites públicas) que se instalam no corpo humano (o restante da sociedade). Nada novo. O azeite que lustra as boas relações na trinca institucional deste país de letras minúsculas se manifesta invariavelmente do mesmo modo há 500 anos. E invariavelmente se resume a você-não-mexe-comigo-que-eu-não-mexo-com-você.

Isso leva a dados horripilantes. Um deles. Metade dos magistrados brasileiros recebe rendimentos que superam o teto constitucional para funcionários públicos (R$ 41,6 mil), conforme reportagem do UOL assinada por Eduardo Militão veiculada domingo (23). Qual a resposta classista? “Está dentro da lei.” É óbvio. Só faltava estar fora da lei. O que esse mesmo CNJ ou os TJs não respondem é se está dentro da legitimidade. Porque a distância entre ser “legal” e ser “legítimo” equivale ao abismo entre ganhar R$ 914 mil num mês (como ocorreu em maio com um magistrado no Rio de Janeiro) e um salário mínimo (R$ 1,3 mil). Ou, a título de obviedade didática, equivale a dizer que já foi “legal” no Brasil ter escravos. Era “legítimo”, cabe perguntar? Pelo racionalismo do CNJ eu tenho medo da resposta.

Por esse motivo, a classe jurídica — que muitas vezes se manifesta como se fosse um fenômeno existencial superior —, para mim mais equivale ao conceito da dualidade onda-partícula. Numa tradução absurdamente rasa trata-se do fenômeno da mecânica quântica em que ora uma coisa é uma coisa e ora é outra. E vice-versa. Por vezes, nossa cáfila jurídica decide legislar. Por vezes, decide atuar como executivo. E por vezes decide ser o que deveria ser, apenas o Poder Judiciário. E mesmo nestes momentos, em que deveria se ater somente a seu ofício, parte de seus militantes luta vorazmente pela manutenção dos benefícios. Ahhhhh, mas há exceções, dirão. Sempre há. Direi. Benito Mussolini era jornalista e nem por isso todo jornalista pensa à Mussolini.

Para mudar de episódio, falo agora de nossa classe política de elite, representada no Congresso Nacional. Aquela que aprova com rapidez de fast food de porta de metrô a PEC da Transição entre o governo anterior e o de Lula III. O preço? Quase R$ 20 bilhões para emendas de parlamentares. Isso na época. Daqui a pouco haverá mais pressão (leia-se “mais grana e liberação de Pix”) para andar a Reforma Tributária, novo Imposto de Renda e assemelhados. Caro? Bem, inclua no preço o rebranding que eliminou da mídia a expressão “Orçamento Secreto”. E nem vou me estender nesse campo dos políticos profissionais. Nossas dinastias. Lula III já gralhou que prefere eles, os políticos, a técnicos. Preferência dele. Não a minha. Costumo dizer que (bom) gosto se discute. Apenas leva tempo e dá trabalho.

Com práxis como essas (e citei apenas o duo jurídico-legislativo) a gente passa a engolir as intermináveis fábulas nos nossos streamings da vida real. Óperas bufas intituladas Era Uma Vez Três Poderes Harmoniosos. Essa dinâmica inteira de não-nação pode se resumir na semana à MP de tributação das casas de apostas. De número 1.182, ela altera a Lei 13.756 (2018) que permitiu o aparecimento das chamadas bets. Haverá dois pontos que tomarão conta dos debates, a partir de agora. O governo quer 18% do Gross Gaming Revenue (GGR), basicamente todo o dinheiro que entra nessas empresas e não vira premiação ou imposto de premiação. O Reino Unido cobra 15%. Soa justo pedir 18%. A questão é que estamos a léguas da ilha. Lá o que parece 15% é 15%. Aqui, o que parece 18% deve virar 30% — porque em cima dele, enquanto a Reforma Tributária gestada não vem ao mundo (e isso vai demorar), haverá Cofins, CSLL, IRPJ, PIS, ISS et al.

Ainda assim, a voracidade tributária me parece o menor dos males que esta MP nos mostra. Haverá lobby das bets no Congresso. Governo, parlamentares e empresas chegarão a um acordo. O que me pega nela é o que não será foco de discussão: por que raios uma MP precisa detalhar a divisão do dinheiro? Tipo… 0,82% para educação básica, 1,63% para clubes e atletas associados às apostas? Ou 2,55% para o Fundo Nacional de Segurança Pública? Educação básica é pedir mais dindim para as gatunagens de kit robótica via FNDE? E quem define os tais clubes e atletas “associados às apostas”? E quanto vai para cada um? Sugiro colocar um percentualzinho para a Codevasf. Por que não? Uma dica: a primeira e mais efetiva pista de que haverá desvio de dinheiro público é carimbar sua destinação. Só blockchain salva este país.

*Edson Rossi é redator-chefe da DINHEIRO.