Rosana de Pádua, da Coface: “Reforma Tributária foi feita a perder de vista. Era preciso ser mais rápido”
Com mais de 30 anos de carreira nas áreas de finanças, compliance, auditoria, recursos humanos e riscos, a executiva que comanda a operação brasileira da companhia francesa líder global em seguros de crédito avalia o cenário econômico brasileiro e os novos desafios do setor, que ainda é pouco explorado
Por Beto Silva
Filha de um taxista e de uma dona de casa, mais velha de quatro irmãos, nascida no periférico bairro de Itaquera, em São Paulo, Rosana Passos de Pádua sempre frequentou escola pública. Para sua família, a educação é a chave que abre as portas das oportunidades. Por isso, se dedicou aos estudos, mesmo tendo de trabalhar desde muito jovem. Aos 15 anos, foi contratada por um laboratório próximo a sua casa. Aos 17, começou a estudar alemão. Formou-se em matemática, obteve MBAs em Administração (Fundação Dom Cabral) e em Finanças e Riscos (USP), além de mestrado em Contabilidade e Ciências Atuariais (PUC-SP). Trabalhou no Bradesco antes de entrar na Basf, onde ficou por 25 anos e chegou a ser diretora financeira. Na CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), exerceu o cargo de diretora de Riscos, Compliance, Auditoria Interna e Recursos Humanos. Foi CFO da Lavoro Holding e da Crop Care. Em março de 2021 foi convidada para assumir como CEO da operação brasileira da francesa Coface, líder em seguro de crédito no País — e no mundo.
Entrou no meio de um furacão chamado Covid-19. Com a resiliência de quem nasceu e cresceu em Itaquera, o conhecimento adquirido nos estudos e a rica bagagem profissional, a executiva encarou momentos conturbados em dois anos e meio no cargo. E após o caos pandêmico, dois acontecimentos colocam o seguro de crédito em destaque no País neste momento. O primeiro deles é o caso Americanas, em que apenas 20 dos 5 mil credores da varejista tinham seguro de crédito, segundo a Coface. O segundo é a Resolução 324 publicada pelo Banco Central (BC) que deve gerar crescimento desse produto.
DINHEIRO — Seu ingresso na Coface ocorreu em um momento global complicado. Qual foi o maior desafio?
Rosana Passos de Pádua — Tive de fazer diferentes papéis dentro da empresa nesse período. Nunca tinha trabalhado em mercado regulado. Aprendi muito. Estava preparada e estou mais madura.
Como estão os níveis de inadimplência neste ano pós-pandemia?
Empresas que adotaram a estratégia de alavancar ao custo de uma taxa de juros de 2% a 4% ao ano para crescer não poderiam imaginar a pandemia. O crescimento esperado não veio. Aguardaram 2020 e 2021 para levar de lado os resultados e, em 2023, não está tão bom. Está piorando.
O caso Americanas complica o quadro?
Com o fim da pandemia e aumento da taxa de juros, assistimos a nossos níveis de inadimplência dobrarem no primeiro trimestre de 2022. No quarto trimestre a inadimplência estava quatro vezes maior do que em 2021. No início deste ano veio à tona o caso Americanas. Esse número explodiu. Se tirar a Americanas, em junho estávamos com quase oito vezes mais inadimplência do que 2021. As ajudas governamentais não existem mais, as commodities internacionais derreteram. Mesmo o agro está sofrendo muito, principalmente quem estocou depois que comprou produtos com preços altíssimos durante a pandemia.
“Depois do caso Americanas, o mercado começou a olhar para o risco de forma diferente. (…) Dos cerca de 5 mil credores, apenas 20 tinham seguro de crédito. Os outros não receberam”
O que mais preocupa neste momento?
Justamente o agronegócio, que ainda tem muito estoque. Quando veio a crise do ano passado, com o início da guerra entre Rússia e Ucrânia, muitas empresas do agro compraram para estocar em níveis altos de preços. Nem todo o estoque foi para o chão. E o que não foi usado não tem como devolver ou renegociar preço. [O produtor] Fica com o prejuízo. Tem um produto, o glifosato [ingrediente ativo de vários herbicidas e defensivos utilizados no controle de plantas daninhas], que custava US$ 90 ano passado. Caiu para US$ 30 agora. Isso é um problema. Existem alguns sinistros nesse sentido. No setor de papel também, sempre com muita dívida. Duas empresas pediram recuperação judicial.
Mas há risco de isso aumentar ou são casos isolados?
São isolados. Dessas duas situações, um deles tinha duas linhas de produção, as duas quebraram e não sobrou dinheiro para arrumar. O outro é problema de gestão. No geral, não há um risco crítico. O varejo se preparou muito para um crescimento a partir de 2019, que não veio. Houve muitas aquisições e agora estão com o ativo. As receitas não estão em bom nível para pagar as dívidas. Vão ter de desinvestir para regular o caixa.
O governo tem falado em retomar o programa de incentivos para a compra de eletrodomésticos da linha branca e já anunciou ajuda ao setor automotivo. Essas ações interferem no crédito?
É o giro da economia. À medida que o consumo acelera, puxa tudo em cadeia.
Aumentou a busca por seguro de crédito?
A percepção de risco mudou. O caso Americanas ajudou nisso. O mundo tinha uma percepção sobre a empresa de que o balanço era bom e havia alta gestão, com o 3G Capital [de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira]. Depois do ocorrido, o mercado começou a olhar para o risco de forma diferente. Não existe mais essa de que o cliente não quebra. Isso fez com que muitas empresas que eram resistentes a ter seguro de crédito buscassem por esse produto. Estamos muito bem em termos de prêmio e novos negócios. Estamos com aumento de mais de 30% em contratos fechados e a tendência é continuar nesse ritmo. Nossa estratégia agora é pulverizar um pouco mais para o Sul, Centro-Oeste, Norte e Nordeste, porque somos muito centralizados no Sudeste, onde está a maior fatia da economia brasileira. Mas tem muito potencial nessas regiões.
O mercado brasileiro está acostumado com esse produto?
Sempre defendi o gerenciamento de risco. O bom gestor de risco sempre olha desde o início da posição até o recebimento da venda. Toda a cadeia tem risco. No Brasil as empresas fazem seguro de vida, de transporte, D&O para os diretores… Depois de tudo isso, entrega a mercadoria para o cliente sem seguro de crédito. No caso Americanas são cerca de 5 mil credores. Apenas 20 tinham seguro de crédito. Os outros não receberam. E se a empresa for altamente dependente da Americanas, não sobrevive. Muitos quebraram. Com isso, o mercado brasileiro tem despertado para o seguro de crédito.
Mas essa situação é cultural do empresariado…
Sim, é cultural. O que a gente houve dos CFOs é que eles conhecem seus clientes.
E o papel dos grandes bancos na concessão de crédito? São vilões?
Há um fato novo que entrou no mercado que é muito favorável. O Banco Central nunca reconheceu o seguro de crédito como uma garantia para os bancos. Isso mudou com a Resolução 324 [de 14 de junho de 20023]. A partir de agora, os bancos podem considerar o seguro de crédito como garantia para montar um FIDC [Fundo de Investimento em Direitos Creditórios], um CRI [Certificado de Recebíveis Imobiliários]. Isso vai mudar o jogo do seguro de crédito.
E por que não era aceito como garantia?
Porque o Banco Central mirava o balanço. Agora analisa o terceiro também. Isso também tem despertado o interesse de bancos. Os grandes estão com muito bons olhos para essa questão. No geral, os bancos analisam o balanço: se tem bons resultados, o crédito aprovado; se tem balanço ruim, o crédito negado. Nesse conceito, muitos bancos estavam com financiamento pesado concedido para a Americanas. Agora tiraram o pé no geral.
Qual sua análise sobre a economia do Brasil em relação ao mundo em termos de crescimento?
O Brasil não deve crescer muito nos próximos três anos. Os indicadores não apontam para isso. No mundo, os países desenvolvidos estão na mesma frigideira, com inflação alta, juros altos, empresas alavancadas sem conseguir gerar resultado suficiente para pagar as dívidas… Não é um problema isolado de Brasil. Devemos conviver com o juro elevado ainda por algum tempo. A maioria das companhias não tem mais do que 6% de margem operacional. Como paga 20% de despesa financeira? Não é sustentável gerar prejuízos consecutivos. Esse é o movimento que nos preocupa na avaliação de risco das companhias. Estamos cortando limite de crédito de muitas. Porque não há perspectiva de equalizar a dívida.
O crédito no Brasil geralmente está alinhando com o crescimento, não?
Também. Na perspectiva de geração de fluxo de caixa e de futuro. Muitas empresas têm gerado fluxo de caixa e tem consumido isso para pagar uma dívida muito mais elevada. Esse paradoxo precisa ser resolvido. O presidente Lula tem razão quando diz que é preciso de baixar os juros. Porém, a gente não está livre da inflação, o brasileiro tem resquícios de inflação alta na cabeça. Há espaço para baixar os juros, mas não deve ficar muito abaixo de 9% até 2026. Nem o mercado acredita nisso.
E os juros altos influenciam ainda na inadimplência.
Note que na medida que a taxa Selic caiu durante a pandemia, as empresas sentiram maior confiança para aumentar endividamento. Porém, o gráfico de evolução dos juros demonstra que no mesmo período em que a taxa permaneceu em um baixo nível [de junho de 2019 a setembro de 2021], a inadimplência também foi muito baixa. E na medida que a taxa de juros começou a aumentar de forma abrupta [passou de 2% em janeiro de 2021 para 13,75% até o mês passado], observamos que a inadimplência foi extremamente afetada. Portanto, posso concluir que a capacidade de pagamento das empresas endividadas está muito comprometida.
“O brasileiro tem resquícios de inflação alta na cabeça. Há espaço para baixar os juros, mas não deve ficar abaixo de 9% até 2026. Nem o mercado acredita nisso”
A aprovação da Reforma Tributária não ajuda nos rumos da economia?
A Reforma Tributária foi feita a perder de vista. O efeito prático no bolso do consumidor vai acontecer quando? Começam os primeiros processos de mudança em 2026, para depois alinhar regras complementares. Era preciso ser mais rápido. O custo tributário é muito grande. Nós não tomamos qualquer decisão sem ouvir nossos especialistas tributários. São poucas pessoas no País que conseguem explicar no detalhe como funcionam os impostos diretos e indiretos.
A previsão de crescimento do PIB vem sendo atualizada por analistas e pelo mercado. Era inferior a 1% e agora já se fala até em pouco mais de 2%. Estão equivocados?
Temos potencial de crescimento maior, só que o grande problema é o consumo. O agro está forte, mas temos de avaliar os próximos balanços para saber a influência dos estoques caros nos resultados. Existem diferentes níveis de estoque. Para alguns, houve planejamento de compras. Outros acharam que o mundo iria acabar, que não iria mais ter fertilizantes, e saíram comprando tudo o que encontraram. Muitos grãos também não tiveram preços tão rentáveis quanto os produtores esperavam. Como vão fechar seus fluxos de caixa? É uma questão para a qual também temos de ficar atentos para o futuro.