Economia

“O que falta para o Brasil é um projeto de país”, diz Roberto Gianetti da Fonseca

Figura de destaque na elaboração dos rumos para internacionalizar a economia brasileira desde a década de 1990, o economista que conjuga experiências de sucesso nos setores público e privado analisa em seu novo livro os primeiros 20 anos do século 21 a partir de episódios que viveu — e entende que o Brasil continuará a ser “o país do futuro” após duas décadas de crescimento medíocre

Crédito: Felipe Gabriel

Roberto Gianetti da Fonseca: "Para um país ser competitivo não basta produzir. É preciso saber vender bem" (Crédito: Felipe Gabriel)

Em 2002, após deixar a secretaria executiva da Câmara de Comércio Exterior (Camex) durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o economista Roberto Gianetti da Fonseca teve de cumprir uma quarentena. Nascido em Belo Horizonte, formado pela Universidade de São Paulo e com especialização em Economia Internacional, ele aproveitou a pausa para repensar seu futuro. Decidiu relatar sua experiência no setor privado, em uma carreira que o levou à presidência da Coita Trading, que nas décadas de 70 e 80 fora uma gigante exportadora, abrindo mercados para o Brasil na África e Ásia. Nasceu assim o livro Memórias de um Trader (IOB), lançado no mesmo ano e que se tornou best-seller. De lá para cá, ele conciliou atividades nos setores público e privado. Fundou a Kaduna Consultoria (especializada em comércio internacional), ocupou cargos de direção em entidades setoriais e passou a presidir o Lide Energia. Na terça-feira (15), lançou seu segundo livro, Penúltimas Memórias (Editora Matrix), em que destaca episódios mais relevantes das duas primeiras décadas do século 21 até as vésperas da pandemia. Antes do lançamento, ele falou à DINHEIRO sobre os motivos que impedem o Brasil de ocupar papel de destaque global e analisou as perspectivas para o País neste terceiro mandato do presidente Lula.

DINHEIRO — Seu livro tem por título Penúltimas memórias e trata dos primeiros 20 anos do século 21. Isso significa que haverá mais um volume?
ROBERTO GIANETTI DA FONSECA — O que eu retrato neste livro são os principais eventos que ocorreram na economia brasileira, e alguns na economia internacional, nos quais eu estive direta ou indiretamente envolvido, seja como empresário ou como agente público. Foram várias as atividades que eu exerci nesse período. Fui secretário executivo da Camex [Câmara de Comércio Exterior, órgão do governo federal], diretor de Relações Internacionais da Fiesp e ocupei outros cargos que proporcionaram algumas histórias que eu julgo bastante interessantes. Um período em que nós tivemos grandes transformações na economia brasileira, desde o Plano Real [em 1995], até anos recentes, às vésperas da pandemia. Resolvi dar um cortºe em 2020. Já estou com 73 anos e acredito que ainda pode vir aí um volume que complete trilogia da minha vida, iniciada com Memórias de um Trader. As coisas que andei fazendo pelo Brasil, pelo comércio exterior e pela economia brasileira. Para mim é isso que dá sentido à vida: ter a capacidade de juntar suas memórias e refletir sobre elas, expondo-as ao público.

Qual a sua avaliação da política econômica deste início de governo Lula?
Ainda é cedo para avaliar porque são apenas seis, sete meses. Mas eu acho que está em uma trajetória ascendente. Há riscos pelo caminho. Vejo muita hesitação e falta de iniciativa em alguns pontos. O governo Lula não trouxe um projeto claro de país. Só agora está sendo discutido isso. Definir as linhas estratégicas daquilo em que a gente pode ser o melhor, o mais competitivo. E como nós vamos melhorar a qualidade de vida da nosso população, combater a fome e a miséria, gerar emprego e renda, aumentar as exportações e abrir mais o Brasil para o comércio exterior. Acho que o que falta para o Brasil de fato é um projeto de país.

“Para um país ser competitivo não basta produzir. É preciso saber vender bem, vender valor agregado, marca. Infelizmente, a cultura exportadora brasileira ainda é muito incipiente”

Recuperar a inserção internacional do Brasil não basta?
Nenhum país do mundo se desenvolveu sem um surto de exportação. Alemanha, Coreia do Sul, China, Japão… Todos cresceram agregando a demanda externa à sua capacidade de oferta, aumentando o emprego e a renda com essa possibilidade de atingir mercados externos. É a maneira mais lógica e mais óbvia de um país crescer e trazer competitividade para dentro, o que envolve qualidade, preço e marketing. Uma frase que eu uso muito é que para um país ser competitivo não basta produzir. É preciso saber vender bem, vender valor agregado, marca. Infelizmente, a cultura exportadora brasileira ainda é muito incipiente.

A Apex não tem ajudado a virar o jogo?
Eu fui um dos criadores da Apex [Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos] e conto essa história também no livro. O Brasil não tinha uma agência para promover exportação e havia R$ 1 bilhão no caixa do Sebrae que poderiam ser usados para esse fim. A Apex é um case de sucesso e que também transformou muito essa atividade exportadora com o valor agregado. Temos exemplos espetaculares no Brasil, como as sandálias Havaianas.

Sendo amigo e conselheiro de Geraldo Alckmin, que acumula a vice-presidência com o Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, acredita que estamos no caminho certo?
Ele é uma pessoa que sabe ouvir, aprende muito rápido e sabe tomar decisões ponderadas. Não é uma pessoa intempestiva. Ao contrário: escuta, troca ideias. Quando toma decisão, está muito seguro de que é a correta. E está exercendo muito bem seu papel, com uma excelente equipe. Ninguém faz nada sozinho, ele soube se cercar das pessoas certas. Agora, é claro, ele tem que começar a entregar resultados.

O que falta?
A gente poderia fazer muito mais. Evidentemente que não podemos adotar, por exemplo, um regime de trabalho como a China tem. Seria uma precarização da mão de obra no Brasil. Fui visitar uma fábrica de sapato na China no início dos anos 2000. O pessoal dormia no emprego, um levantava da cama, o outro deitava e se revezavam nos turnos. Ficavam dez dias sem sair do ambiente da fábrica. Mas não é por isso que eles conseguiam produzir um sapato para concorrer com o Brasil. Eles fazem isso por usar inteligência. Vieram ao Rio Grande do Sul, contrataram algumas dezenas de designers, técnicos em controle de qualidade e levaram para a China a peso de ouro.

Eles treinaram os chineses e de repente o calçado de lá começou a aparecer nos Estados Unidos pela metade do preço do brasileiro, com a mesma qualidade. Como é possível concorrer com a China?
É preciso direcionar, ser um vetor de desenvolvimento na área usando justamente as ferramentas do mercado. Há momentos em que é preciso menos regulação, menos travas. Ok, ajuda a alocação de recursos, a política de preço. Corrigir distorções que às vezes acontecem por questões alheias, exógenas.

Poderíamos crescer mais?
Tivemos um ciclo muito positivo até os anos 1980, depois caímos na armadilha da dívida externa, que prejudicou a nossa trajetória. Tivemos uma moratória, paramos de pagar a dívida e perdemos investimento. Aí vivemos nos anos 90 todo o tumulto da inflação. Recuperamos um pouco com o Plano Real, mas caímos de novo nessa inércia de 20 anos crescendo a 2% ao ano. É um filme medíocre para a nossa geração. Não conseguimos trazer o Brasil para o futuro. Continuamos indefinidamente sendo o país do futuro.

Quais episódios você considera mais importantes nesse arco de tempo que o livro abarca?
Eu destacaria três. Há um capítulo que chama Nervos de Aço, que relata uma tarefa que eu tive que cumprir para o setor siderúrgico enquanto era secretário executivo da Camex. Precisava defendê-los nos Estados Unidos de salvaguardas que estavam sendo aplicadas sobre o aço brasileiro e depois mudar de posição e defender no Brasil que o aço brasileiro não tivesse aumento de imposto, porque isso traria graves consequências a toda cadeia produtiva da indústria de transformação, do setor automobilístico ao de eletrodomésticos e utensílios, que são grandes usuários de aço como insumo. Isso me causou um problema muito grande dentro do governo. A minha atitude foi considerada uma desobediência, uma insubordinação por alguns ­— inclusive por uma pessoa que eu respeito muito e que faleceu recentemente, o então ministro Sérgio Amaral. Mas eu não estava ali para simplesmente homologar ou ratificar decisões superiores sem base técnica. Então foi uma briga dentro do governo que me deixou cicatrizes. Fiquei magoado, noites sem dormir. Esse foi o motivo da minha saída do governo.

“Criamos um comportamento absurdo na economia do País que foi desistir do setor produtivo com uma perversa transferência de recursos para o setor financeiro”

Passando para o episódio seguinte…
Também foi muito marcante na minha vida o caso da Paranapanema [conglomerado de empresas do setor de mineração e metalurgia que em 2007 sofreu uma autuação de R$ 275 milhões da Receita Federal]. Ele acabou me envolvendo na operação Zelotes [deflagrada pela Polícia Federal em 2016] de uma forma muito injusta, incorreta e ilegítima. Porque não há nenhuma evidência de qualquer envolvimento meu em suborno de integrantes do Carf [Conselho Administrativo de Recursos Fiscais] para tomar uma decisão a favor da empresa. O mérito da companhia era inequívoco, isso não dito por mim, que era parte interessada, mas pelos melhores juristas do Brasil e até por pessoas do governo. Aquilo me causou evidentemente uma frustração. Sofri um linchamento moral, com busca e apreensão na minha casa sem motivação nenhuma. Até hoje não acharam nada. É uma pena que no Brasil a gente tem esse patrulhamento hostil, às vezes até por motivos obscuros. Na época eu era coordenador da campanha do João Doria para a prefeitura de São Paulo e também estava colaborando como economista na campanha do Geraldo Alckmin para a presidência. Obviamente eu fui alvo de alguma motivação política, porque coisas que estavam no meu laptop apreendido `as 7 horas da manhã chegaram aos telejornais às 10h. Eu acho que é importante para a sociedade brasileira refletir sobre isso, aprender com os erros para não repeti-los.

E o último destaque?
O cartel de câmbio que provocou a sobrevalorização do real no período de 2009 a 2011 [a cotação do dólar passou de R$ 2,40 em abril de 2009 para para R$ 1,80 no início de 2010, queda de 25% em menos de um ano].Uma manipulação que trouxe gravíssimos prejuízos. Ouso dizer que talvez tenha sido o mais grave prejuízo dos últimos 50 anos para a indústria brasileira. Causou o fechamento de centenas de milhares de empresas, milhões de empregos, queda das exportações de manufaturados, queda dos investimentos na indústria brasileira e o preço que estamos pagando até hoje quando se fala que os manufaturados não conseguem mais exportar, que a nossa indústria está defasada. Deixamos os estrangeiros capturarem nos nossos mercados. Porque quando a indústria está no prejuízo ela não investe. O rating dela não permite ter crédito. Criamos um comportamento absurdo na economia do País que foi desistir do setor produtivo com uma perversa transferência de recursos para o setor financeiro. Eu espero que os banqueiros que leiam o livro não olhem como crítica mas como um alerta, para que isso não aconteça de novo.