Previdência: a reforma envelhece (e precisa de reforma)
Estrutura brasileira de aposentadorias, refeita há quatros anos, ainda não dá conta de equacionar o envelhecimento da população e os gastos do governo
Por Paula Cristina
A Reforma da Previdência, primeira grande mudança na estrutura dos gastos públicos do século 21, completa agora quatro anos. O lado bom é que a alteração realmente diminuiu as despesas do governo federal com aposentados e pensionistas. A redução girou em torno de R$ 156,1 bilhões entre 2020 e 2022, muito acima dos R$ 87 bilhões projetados pelo governo Bolsonaro, em 2019, quando foi promulgada. O lado ruim é que a reforma aprofundou algumas disparidades entre classes sociais no Brasil, com a base da pirâmide ficando mais exposta no longo prazo, enquanto as perdas nas classes tradicionalmente privilegiadas são amortizadas no curtíssimo prazo. “Toda grande reforma deveria ser com o Plano Diretor de um município. A cada cinco anos é obrigatório revisitar”, disse Nelson Ellery, doutor em macroeconomia pública e um dos autores da PEC que alterou a Previdência Social há quatro anos.
Ellery, que integrou a equipe econômica do governo Michel Temer, foi o responsável pelo cálculo de economia de R$ 1 trilhão em dez anos, que depois foi aventado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, na gestão seguinte.
Na prática o foco do governo naquele momento era cortar gastos, ainda que esse corte não fosse exatamente proporcional. Trata-se de algo difícil de resolver porque envolve múltiplos fatores, incluindo variáveis regionais que vão de expectativa de vida à renda.
“Em alguns estados a idade média é 77, em outros, 70. Assumimos que parte dos aposentados vai usufruir o benefício por menos tempo”, disse. Essa questão demográfica, na opinião do economista, é um dos assuntos que deveriam ser debatidos em uma revisão periódica. “Não há grandes mudanças a serem feitas. Mas há pontos a serem olhados.”
Do ponto de vista fiscal, a reforma já dá bons resultados. Segundo estimativa de Leonardo Rolim, consultor legislativo, ex-secretário de Previdência e ex-presidente do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a economia proporcionada pela Reforma da Previdência entre 2020 e 2022 fica em torno de R$ 156,1 bilhões.
Isso significa 78% mais do que o esperado pelo Congresso (algo em torno R$ 86 bilhões). O número dá razão às projeções de Paulo Guedes, então ministro da Economia, que falava sobre redução de R$ 1 trilhão em dez anos. “É preciso lembrar que, ano a ano, a redução proporcionalmente aumenta”, disse Rolim. Para ele, a cifra mágica de R$ 1 trilhão tem grandes chances de acontecer.
Nova previdência já deu resultado: governo economiza R$156 bilhões em três anos, e deve atingir a casa de R$ 1 trilhão em uma década
Esse número, no entanto, não vem de uma conta exatamente igual para todos. Apesar de ter sido desenhada com desconto progressivo, ou seja, quem ganha mais desconta mais, há um teto. Explico. Um salário mínimo desconta 11% para o INSS. Já um salário de R$ 6 mil ou um salário de R$ 66 mil descontam os mesmos 14,69%.
Um estudo da Unicamp colocou esses valores em perspectiva. Em dez anos as pessoas que ganham mais de R$ 40 mil de salário representarão 0,4% da redução dos gastos, mas custarão cerca de 15% do bolo previdenciário.
Nesse topo estão incluídos, claro, militares e servidores públicos. Uma mudança incluída no final da discussão da Reforma da Previdência, em agosto de 2019, faz toda a diferença no longo prazo. Por ela ficou determinado que, diferentemente do que acontecia, o cálculo da aposentadoria passou a ser feito com base em todo histórico de salário e contribuições, e não apenas dos últimos cinco anos, como previa a regra anterior.
Na prática, há distorções porque a qualidade e o tempo da contribuição do grosso dos brasileiros em relação a quem está no topo são muito diferentes.
Segundo o estudo da Unicamp, as pessoas mais ricas, em média, levam dez anos para atingir um salário 20 vezes maior do que o inicial. Já as pessoas mais pobres muitas vezes cumprem todo o tempo de contribuição sem bater essa marca. Um problema grave que precisa ser equacionado. Com a devida urgência, porque a reforma pode virar uma supermáquina multiplicadora da desigualdade.
O estudo Um Novo Olhar para a Favela 2021, encomendado pela Favela Rising, ONG britânica com atuação em comunidades do Rio de Janeiro, mostrou que 35% das famílias em comunidades possuem como única fonte de renda pensão (quando o benefício deriva de um parente morto) ou aposentadoria de avós.
Além disso, um em cada dez recebe Benefício de Prestação Continuada (BPC), e 5% deles, auxílio doença.
Segundo Oliver Marshall, economista britânico responsável pelo estudo, com as reformas da Previdência e a Trabalhista, haverá uma evasão em massa da contribuição ao INSS e gerará uma insustentabilidade inevitável para o governo.
“As pessoas mais velhas e mais vulneráveis dependerão cada vez mais de programas sociais. É um ciclo complicado e que precisa ser revisto.”
Oliver Marshall, economista britânico responsável pelo estudo Um Novo Olhar para a Favela 2021
Ele diz que uma das saídas é criar faixas com idades diferentes para condições diferentes. “A mulher, preta, de favela, com jornada tripla em um trabalho informal precisa trabalhar até os 62 anos, mesmo que a expectativa de vida dela seja 60 anos”, disse.
Essa mulher, inclusive, também perde a pensão do marido se ela própria for aposentada em caso de falecimento do cônjuge. Na base da pirâmide esses efeitos já podem ser sentidos. Segundo dados do Ministério da Previdência Social, o valor médio do benefício caiu de R$ 1.784,79 (2019), já considerada a inflação, para R$ 1.599,50 (junho deste ano).
Generalato
A Previdência do brasileiro comum não pode ser entendida sem o componente militar da equação. O Brasil tem 175 generais na ativa. É o mesmo número de generais que o Exército dos Estados Unidos possui, o mais equipado e poderoso do mundo. Com a diferença que os generais brasileiros comandam aproximadamente a metade de homens que os generais dos EUA, o que faz com o nosso Exército tenha, proporcionalmente, mais generais.
O Brasil possui hoje 175 generais na ativa. Para cada um em atividade, o Brasil banca 24 na reserva e 48 herdeiros
Em números absolutos, o levantamento aponta que para cada general brasileiro da ativa, há outros 24 generais da reserva, além de 48 herdeiros do generalato que recebem pensões integrais. O total de generais da ativa, da reserva e de beneficiários gira em torno de 10 mil pessoas. É o suficiente para consumir, por ano, a mesma quantia de dinheiro público que os 90 mil soldados e cabos da força recebem pelos seus serviços no mesmo período.
Ainda de acordo com o levantamento, nos últimos quatro anos foram gastos R$ 94 bilhões para pagar pensões a herdeiros de militares — neste caso, levando em conta não apenas o generalato, mas todas as patentes. Tal valor poderia bancar no mesmo intervalo, por exemplo, o Bolsa Família para cerca de 3 milhões de famílias (hoje há no programa 21 milhões).
Tais pensões começaram a ser pagas para sobreviventes da Guerra do Paraguai (1864-1870) e suas viúvas. Anos depois, os pagamentos se estenderam às filhas dos militares.
Em 1960 uma nova lei regulamentou o benefício. Até 2001, quando o governo brasileiro cortou a mamata para quem entrava nas Forças Armadas a partir daquele ano. No entanto, para aqueles que já gozavam do benefício, ele se manteve.
Para o Brasil parar de arcar com tais gastos, caso não haja novas mudanças na legislação, será preciso esperar a morte dos últimos beneficiários. Segundo estimativas do Ministério da Defesa feitas em 2020 a partir da expectativa média das viúvas e herdeiros, bancaremos os privilégios do generalato até 2096.
O Índice Global de Aposentadoria Natixis deste ano dá um cenário da situação brasileira. Das 44 nações avaliadas o Brasil é o penúltimo colocado no ranking global de aposentadoria, ficando atrás apenas de Índia. O estudo leva em conta quatro pontos principais:
* saúde,
* finanças,
* qualidade de vida,
* bem-estar.
Valeria refazer esse indicador sob a óptica militar. Em qual lugar o Brasil ficaria?
O mistério da fila desaparecida
Depois de uma discrepância de números envolvendo o número de brasileiros na fila de espera para obtenção de aposentadoria ou auxílio doença, o Ministério da Previdência Social anunciou a criação de um grupo de trabalho para examinar o caso.
A diferença se deu porque o próprio ministério, através de um boletim mensal de longa data, revelou haver 1,42 milhão de pessoas em espera, enquanto o Portal da Transparência da Previdência indicava um 1,2 milhão, deixando a dúvida sobre onde estariam os 223 mil requerimentos entre as duas amostragens.
Segundo o ministro de Previdência Social, Carlos Lupi, já foram pedidos documentos, esclarecimentos e série histórica de todos os processos no Brasil nos últimos anos, com o intuído de entender onde está o ponto cego. “Trabalhamos para aprimorar a Previdência, trabalhando com clareza e eficiência”, disse ele à DINHEIRO.
Sem arriscar onde pode estar o erro, ele se limitou a dizer que o ministério “trabalha incansavelmente”.
Outro número que tem causado confusão envolve as perícias médicas. O Portal da Transparência da Previdência indica 596.699 pedidos de perícia, os dados obtidos via ministério informam quase o dobro (1, 07 milhão).
Em entrevista na sexta-feira (1), o presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, disse que o governo ainda não tem uma resposta para a divergência nos números, mas desconfia que algumas tarefas antigas continuam pendentes no sistema, embora o segurado não esteja mais à espera de análise, por diferentes motivos.
“Imaginamos que [possam ter sido mantidas] tarefas que não eram necessárias ou tarefas desprezadas de 2008, 2007, ou seja, não é uma pessoa que está esperando”, afirmou. Mais uma prova que a Previdência Social precisa rejuvenescer.