A declaração de Durban, cotas e uma cassação

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Raphael Vicente: "Esse fenômeno chamado racismo e principalmente como ele ocorre, amplifica desigualdades, promove distorções brutais na sociedade, inclusive resultando em morte, passou a ser compreendido, observado e coibido" (Crédito: Divulgação)

Por Raphael Vicente

A tipificação do crime racismo ocorreu em 1989, mas até pouquíssimo tempo era muito raro encontrar pessoas punidas por esse crime. Entretanto, de 1989 para cá muita coisa mudou.

O Brasil é o único país de maioria negra fora da África. Nossa intensa miscigenação ajudou a reforçar, além, obviamente, do esforço de legitimação e naturalização do racismo, a falsa ideia de que vivíamos a plenitude de acessos, oportunidades econômicas, sociais, educacionais, regidos única e exclusivamente pela meritocracia.

Principalmente a partir dos anos 2000, a agenda racial mundialmente começou a ganhar novos contornos. A declaração de Durban (2001) reconhece o flagelo do racismo, do tráfico transatlântico, bem como os resultados que o racismo produziu e ainda produz, ou seja, as mais nocivas e perversas distorções e desigualdades nas sociedades. Por fim, convocou os países signatários a estabelecerem programas, ações e metas para combater o racismo através de políticas públicas. O Brasil foi um dos países signatários.

Também a partir dos anos 2000, inicia-se o movimento o qual eu arriscaria dizer ter sido o grande catalisador da compreensão do problema racial brasileiro, ou seja, o início dos programas das ações afirmativas no Brasil, especificamente os programas de cotas nas universidades.

Esse debate se arrastou por anos, tendo ganhado inclusive a grande mídia e a sociedade como um todo, e discutia a seguinte questão: quem é negro no Brasil? Mas a grande questão que pairava ao fundo era se existia ou não racismo no Brasil. Pensemos: se não existisse racismo, nenhuma medida precisaria ser tomada. Agora, se existe e ele produz efeitos na sociedade, inclusive o de restringir acesso a oportunidades, então é preciso intervir e mitigar esses efeitos, garantindo, assim, acesso equitativo a todos.

O debate foi pesado. Houve testes de DNA com negros famosos para demonstrar suas origens europeias, abaixo-assinados de intelectuais se colocando contra as ações afirmativas, chuva de mandados de segurança… Entretanto, mesmo nesse embate as cotas se mantiveram por tempo suficiente para que pudessem produzir os efeitos desejados. Como diz a velha máxima: “contra fatos não há argumentos”.

Os resultados das cotas nas universidades públicas contradisseram todos os principais argumentos contrários à sua instalação, produzindo todos os resultados esperados por aqueles que as defendiam, ou seja, a qualidade da universidade não caiu, os alunos provenientes das cotas conseguiram acompanhar e inclusive superar em desempenho os alunos não cotistas e o ambiente acadêmico começou a ser transformado com uma diversidade de pessoas nunca antes vista na história do País. Esses resultados deram força à política pública que então havia se desenhado. Depois de uma década, converteu até os maiores críticos.

Toda essa trajetória pavimentou não só o caminho das ações afirmativas no Brasil, mas amadureceu o tema racial para todas as demais instituições, as quais compreenderam e aprofundaram-se nesse tema complexo. Esse fenômeno chamado racismo e principalmente como ele ocorre, amplifica desigualdades, promove distorções brutais na sociedade, inclusive resultando em morte, passou a ser compreendido, observado e coibido. Lógico que ainda não na sua plenitude.

Talvez, um dos fatos mais marcantes que demonstra, entre tantos outros, a mudança colossal da compreensão da questão racial no Brasil é justamente a cassação do vereador Camilo Cristófaro.

Pela primeira vez na história do País um vereador é cassado por racismo. Não foi por qualquer outro tema, mas por racismo pura e simplesmente. Essa cassação nos dá a dimensão do que foram pelo menos as últimas três décadas de Brasil, mas poderíamos facilmente recordar Florestan Fernandes e Roger Baptiste que já na década de 1940 desnudavam completamente o mecanismo de funcionamento do racismo na sociedade brasileira.

Estamos longe do ideal, mas parece que finalmente encontramos um caminho não só para mitigar, mas buscar a eliminação de todos os tipos de discriminações da sociedade brasileira e um País mais justo para todos os brasileiros.

Raphael Vicente é Diretor-Geral da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial. Advogado, Mestre e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Professor e diretor-Geral da Universidade Zumbi dos Palmares