A empresa como espaço de experiência da cultura
Por Dante Gallian
Há 90 anos, o filósofo José Ortega y Gasset foi convidado pelos alunos da Universidade de Madrid para proferir uma conferência sobre a missão da universidade. Naquela época, discutia-se intensamente a reforma universitária na Espanha, a exemplo do que já se estava fazendo no resto da Europa. No contexto de ascensão dos regimes totalitários, às vésperas da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial, Ortega y Gasset alertava sobre a importância de se pensar a universidade não apenas como instituição comprometida com a formação profissional e a pesquisa científica, mas também, e principalmente, como espaço da “experiência da cultura”.
Isso porque, advertia o filósofo, a cultura era a única coisa que podia nos salvar daquilo que ele chamava de “o naufrágio vital”. De que adiantava formar profissionais de elevado nível técnico e científico que, por outro lado, se constituiriam nos “novos bárbaros” da Modernidade: pessoas sem senso crítico, sensibilidade e valores humanos desenvolvidos?
O questionamento de Ortega revelou-se profético: muitos dos excelentes profissionais de elevado nível científico e técnico que saíram das modelares universidades alemãs daquela época foram os “novos bárbaros” que conceberam as câmaras de gás e outras atrocidades utilizadas pelos nazistas poucos anos depois.
No contexto da pauta ESG, é preciso se considerar a missão formativa e até mesmo civilizatória que a empresa deve desempenhar na sociedade. Ajudar a formar cidadãos humanizados traz uma contribuição não só para o mundo, mas para a própria companhia
Infelizmente, o discurso de Ortega y Gasset apresenta uma atualidade desconcertante. Quase um século depois, após inúmeras reformas, as universidades mundo afora continuam padecendo dos mesmos problemas, formando profissionais que sem deixar de ter um nível técnico relativamente elevado, apresentam nível cultural e humano cada vez mais sofrível. Com isso, milhares de “novos bárbaros” continuam a ser despejados no mercado. O resultado tem sido desastroso. Pois, se a educação científica e técnica do profissional continua sendo um elemento indispensável para o universo empresarial, a formação cultural e humana vai se revelando uma qualidade cada vez mais essencial, num contexto em que sensibilidade, senso crítico e criatividade desempenham papéis cruciais.
Diante disso, o que fazer? Deverão os líderes e gestores do mundo corporativo aguardar mais um século na esperança de que as universidades reconheçam sua verdadeira missão, ou então, tomarem consciência do seu papel em não apenas pressionar a reforma das instituições de ensino, mas também em contribuir eles mesmos com essa missão de formar novos cidadãos em vez de novos bárbaros?
No contexto da pauta ESG, é preciso se considerar a missão formativa e até mesmo civilizatória que a empresa deve desempenhar na sociedade. Transformar a organização num espaço de “experiência da cultura” não deixa de ser uma proposta coerente e condizente com o novo papel a ser desempenhado pelas corporações no mundo atual. Fazer da empresa um espaço de formação humana e cultural, em harmonia com sua missão produtiva e financeira, amplifica e radicaliza seu compromisso com as causas ambientais, sociais e de governança. Ajudar a formar cidadãos humanizados traz uma contribuição não só para o mundo, mas para a própria companhia.
Dante Gallian é doutor em História pela USP, coordenador do Laboratório de Leitura da Escola Paulista de Medicina e autor de Responsabilidade humanística — uma proposta para a agenda ESG (Poligrafia Editora)