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A brecha que pode levar o Brasil à elite do comércio global; entenda

Em meio às disputas entre os Estados Unidos e a China pela liderança econômica, militar e tecnológica do planeta, o Brasil ganha papel estratégico por suas condições naturais e domínio da energia renovável — uma vantagem que pode significar um salto no novo contexto da geopolítica

Crédito: Ricardo Stuckert / PR

Os presidentes Lula e Joe Biden na Semana do Clima de Nova York, em setembro. Brasil pode ser o parceiro ideal da estratégia dos EUA para as Américas (Crédito: Ricardo Stuckert / PR)

Por Beto Silva, Celso Masson e Jaqueline Mendes

RESUMO

• China e EUA disputam hegemonia global, o que abre oportunidades para negócios com ambos os players
• Presidente dos EUA quer incentivar prosperidade econômica na América Latina e retomar hegemonia comercial
• Como maior economia da região, Brasil tem protagonismo na disputa entre as duas potências
• Vantagens do Brasil no atual cenário: energia limpa, biodiversidade, democracia consolidada e desenvolvimento digital
Obstáculos internos: questões fiscais, tributárias e de infraestrutura, insegurança jurídica, insegurança física e patrimonial, custo do emprego

 

Um trilhão de dólares ao ano. Essa é a cifra com a qual o presidente Lula sonha para o comércio exterior brasileiro. O número foi anunciado em tom de provocação na terça-feira (7), durante o discurso no Palácio do Itamaraty que abriu o 6º Fórum Brasil de Investimentos. “Queremos garantir a possibilidade de vocês colocarem a inteligência empresarial para que este país cresça cada vez mais”, afirmou Lula à plateia formada por empresários brasileiros e estrangeiros. “Ao invés de 600 e pouco bilhões de dólares, por que a gente não estabelece a meta de chegar a US$ 1 trilhão de comércio exterior?”, indagou.

Ainda que o valor em si pareça fora de alcance por significar quase o dobro do fluxo de transações atual, o momento é extremamente oportuno para que o Brasil ocupe mais espaço em uma nova ordenação das relações comerciais do planeta. E o principal fator para isso não é o ufanismo lulista e sim a crescente disputa entre Estados Unidos e China pela liderança global nos âmbitos mercantil, econômico, político e militar.

Por razões geopolíticas, tributárias e de um novo alinhamento da Ásia, países como Índia e Bangladesh terão prioridade nos investimentos chineses (Crédito:Costfoto/NurPhoto)

Começando pelas Américas, historicamente uma área de influência natural dos EUA tanto pela proximidade geográfica quanto pelos valores republicanos. Ainda que falem línguas distintas, os países que formam o continente americano foram colonizados por nações europeias, são predominantemente democráticos e cristãos.

Ainda assim, nos últimos 20 anos, todo o Cone Sul se aproximou muito mais da China como principal parceiro comercial, deixando os EUA em segundo plano.

Mas isso pode começar a ser revertido rapidamente a partir de uma iniciativa do governo de Joe Biden, anunciada em junho de 2022 durante a Cúpula das Américas, em Los Angeles. Na sexta-feira (3), o presidente dos EUA se reuniu com líderes dos outros 11 países da Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica (Barbados, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Panamá, Peru, República Dominicana e Uruguai) e anunciou o plano para impulsionar o crescimento inclusivo e fortalecer cadeias consideradas estratégicas:
• energia limpa,
• semicondutores,
• suprimentos médicos.

São áreas que a China tem dominado.

Biden anunciou ainda a criação da Plataforma de Parceria das Américas para construir portos modernos e infraestruturas digitais necessárias para o que considera “uma economia competitiva e resiliente”.

Almirante Ilques Barbosa, consultor do BNDES (Crédito:Divulgação)

“A importância atribuída ao Brasil decorre, em maior grau, das possibilidades que se abrem para a China e menos do que o País realmente significa.”
Ilques Barbosa, Almirante

Embora o Brasil não integre os grupos de trabalho da Parceria das Américas, a condição de líder da economia sul-americana abre perspectivas importantes de parceria com os países do continente.

Para o almirante Ilques Barbosa Junior, que comandou a Marinha Brasileira de 2019 a 2021 e hoje atua como consultor do BNDES, a estratégia de Biden pode ser considerada um novo Plano Marshall, em referência ao esforço empregado durante a guerra fria para conter o avanço da União Soviética.

“A diferença é que desta vez os Estados Unidos não estão na ofensiva e sim reagindo a um fato consumado: a perda da hegemonia comercial na América do Sul”. Segundo o almirante, enquanto os EUA se desgastaram ao entrar em sucessivas guerras e conflitos desde o Vietnã, a China investiu recursos na criação da mais poderosa rede logística mundial, que o governo de Pequim chama de nova rota da seda.

“O comércio mundial está cada vez mais nas mãos da China”, disse Barbosa Junior. Para ele, o que resta ao Estados Unidos é tentar frear a expansão chinesa no âmbito econômico e tecnológico. “Nesse contexto, a importância atribuída ao Brasil decorre, em maior grau, das possibilidades que se abrem para a China e menos do que realmente significa o Brasil. A realidade da política internacional impõe esse entendimento”, afirmou.

Energia limpa

Ainda que a posição do Brasil no jogo global dependa da estratégia das duas maiores potências, há fatores que podem beneficiar e acelerar a participação brasileira no comércio internacional. É evidente que não basta escolher um número aleatório como alvo. Mas é inegável que há espaço para o Brasil crescer em pelo menos uma das três áreas prioritárias no plano de Joe Biden: energia limpa.

Segundo o economista Marcos Troyjo, ex-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (mais conhecido como Banco do Brics, hoje presidido por Dilma Rousseff), o Brasil tem um perfil de mercado muito interessante para os Estados Unidos, tanto por ser uma democracia consolidada e com alto nível de desenvolvimento digital quanto por ter um mercado muito atraente e com um manancial de potencialidades que não é visto no restante do mundo.

“O Brasil é a resposta estratégica para dilemas como segurança alimentar, proteção ambiental e segurança energética”, disse Troyjo. “Acima de tudo, tem experiência em aplicação de escala em energias limpas como solar, eólica e biocombustíveis.” Ainda segundo ele, há um processo de redesenho das cadeias de valor no mundo.

Por razões geopolíticas, tributárias e de um novo alinhamento da Ásia, países como Índia e Bangladesh terão prioridade nos investimentos chineses. “A China deixou de ser um low cost country, fenômeno que pode beneficiar países como México e Brasil.”

Marcos Troyjo, economista, ex-presidente do Banco dos Brics (Crédito:Divulgação)

“O Brasil é a resposta estratégica para dilemas como segurança alimentar, proteção ambiental e segurança energética.”
Marcos Troyjo, Economista

Essa reconfiguração da cadeia de valor traz uma boa previsão meteorológica para o Brasil, mas as condições reais do clima só serão vistas no decorrer dos próximos anos.

O País precisará vencer seus obstáculos internos em questões fiscais, tributárias e de infraestrutura. Segundo dados da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2022 o Brasil ocupou apenas a 24ª posição entre as nações que mais exportaram.

De janeiro a outubro deste ano, as exportações brasileiras somaram US$ 282 bilhões. Se o número reflete as limitações do País para estar entre os líderes do comércio global, a realidade dos demais países também sinaliza que há espaço para o Brasil ocupar.

Coordenador do núcleo de estudos Brasil-China da FGV, Evandro Carvalho avalia que a economia chinesa está lutando para se recuperar de três anos de duras restrições decorrentes da política de Covid zero. “A confiança dos investidores está diminuindo e uma crise demográfica se aproxima, uma vez que o país registrou seu primeiro declínio populacional em seis décadas”, afirmou.

À medida que as antigas estruturas globais de suprimentos foram desintegradas, o Brasil, naturalmente, fica mais próximo dos Estados Unidos. O que não é exatamente algo novo.

Para o diretor-superintendente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), Fernando Valente Pimentel, o Brasil sempre foi um parceiro estratégico dos EUA. “O maior estoque de investimentos no Brasil é americano. Às vezes nuances políticas, falta de convergências entre presidentes acabam afastando um pouco, mas temos uma relação histórica”, afirmou.

Segundo ele, neste momento, com os EUA dispostos a criar novas alternativas de suprimentos com base nas questões geopolíticas e para aumentar a segurança do fornecimento, o Brasil fica numa posição vantajosa em relação aos demais países. “Temos bioeconomia e biodiversidade. Ninguém pode ignorar o Brasil nessa agenda”.

Porém, essa aparente vantagem não se traduz em competitividade. “Produzir no Brasil custa R$ 1,7 trilhão a mais por ano do que a média dos países da OCDE. Estamos falando de insegurança jurídica, insegurança física e patrimonial, custo do emprego, conformidade tributária, infraestrutura”, afirmou Pimentel. “Temos uma agenda interna, que é reduzir o Custo Brasil, e também temos o obstáculo da falta de acordos internacionais com grandes países.”

Jefferson de Paula, presidente da ArcelorMittal (Crédito:Claudio Gatti )

“É difícil conceber o fortalecimento da competitividade regional e da indústria das Américas sem a participação do Brasil.”
Jefferson de Paula, da ArcelorMittal

Ele cita como exemplo o setor têxtil. “Uma calça jeans do Brasil para entrar no mercado americano paga 17% de imposto. Já o México, que superou a China neste ano em exportações para os EUA, paga 0%”. Ainda segundo o diretor da Abit, muitas marcas brasileiras estão se instalando no mercado americano, mas ainda há espaço para ser explorado. “Temos de avançar em acordos que permitam aos nossos produtos entrarem mais facilmente lá e nas Américas como um todo”, afirmou.

Desafios

A falta de um acordo de livre comércio com os EUA é o que explica o fato de o Brasil não fazer parte da Parceria das Américas lançada por Biden no ano passado (Apep, na sigla em inglês). Porém, os governos dos dois países estão neste momento discutindo oportunidades para a participação de empresas brasileiras nos chamados pacotes de apoio e de subsídios criados no esforço norte-americano para reduzir sua própria dependência da economia asiática.

Para Jefferson De Paula, presidente da ArcelorMittal Brasil e do Conselho Diretor da entidade que representa as empresas brasileiras produtoras de aço, “é difícil conceber o fortalecimento da competitividade regional e da indústria das Américas sem a participação do Brasil”.

Segundo ele, o Brasil tem vantagens comparativas que podem se transformar em vantagens competitivas. “A matriz energética majoritariamente renovável e a capacidade tecnológica para realizar a transição energética para uma economia verde reduzem custos, oferecendo uma solução climática que poderá ser lucrativa para o meio ambiente e para os negócios”, afirmou.

Fernando Pimentel, da ABIT (Crédito:Divulgação)

“À medida que as antigas estruturas globais de suprimentos foram desintegradas, o Brasil, naturalmente, fica mais próximo dos Estados Unidos.”
Fernando Pimentel, da ABIT

Especificamente sobre o setor em que atua, De Paula entende que a integração da indústria do aço brasileira às cadeias produtivas dos EUA oferece possibilidades promissoras, como o aumento da exportação de aço e produto acabado e elevação dos investimentos de empresas norte-americanas no Brasil em infraestrutura.

“Além disso, o crescimento da economia americana induz o crescimento de outras economias, inclusive a latino-americana, gerando mais oportunidades de comércio com o Brasil”.

Assim, quem sabe, o sonho de ver 1 trilhão de dólares na conta-corrente do comércio internacional brasileiro se torne realidade em um futuro nem tão distante.