“A fartura de recursos naturais acomoda o Brasil”, diz Mangabeira Unger, ex-ministro de Lula
Para o professor da Universidade Harvard, o País agrega pouco valor ao fornecer matérias-primas e alimentos para o mundo, mas estaria em grave crise se não fossem o agro, a pecuária e a mineração. A saída, para ele, está na Amazônia e em fazer do setor primário um terreno para economia avançada do conhecimento
Por Jaqueline Mendes
Filósofo, professor da Universidade Harvard (EUA) e estudioso da política brasileira, Roberto Mangabeira Unger foi uma espécie de conselheiro do presidente Lula em seu segundo mandato. Como ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, ajudou a definir algumas das principais políticas de incentivo ao setor produtivo de 2007 a 2009, além de ter assumido a coordenação do Plano Amazônia Sustentável. Aos 76 anos e vivendo em Cambridge, no estado americano de Massachussets, ele desenvolve voluntariamente novos planos para o desenvolvimento do Brasil, enquanto faz duras críticas à condução de Lula em sua terceira gestão e o rentismo da elite brasileira.
DINHEIRO — Em que consiste o seu projeto União da Inteligência com a Natureza?
ROBERTO MANGABEIRA UNGER — O Brasil está sobre uma região rica em recursos naturais. Isso deveria ser uma bênção, mas pode virar uma maldição também. Começamos a enfrentar um dilema que ressoa em grande parte do mundo. A indústria convencional está em franca retração e a fartura de recursos naturais acomoda o País a uma condição de mero fornecedor de matérias-primas e alimentos. Há pouco valor agregado. O Brasil é apenas um dos muitos países do mundo que estão se desindustrializando. A alternativa à indústria convencional, com um fordismo industrial tardio instaurado no Sudeste do País em meados do século passado, seria uma forma inclusiva da nova vanguarda produtiva, que chamamos de economia do conhecimento. Não é apenas a manufatura avançada. É também os serviços intelectualmente densos e até mesmo a agricultura de precisão científica. A alternativa à indústria convencional como atalho ao crescimento econômico seria uma forma inclusiva dessa nova vanguarda da economia do conhecimento. Esse é o resumo do projeto União da Inteligência com a Natureza.
O Brasil não tem avançado nessa agregação de valor aos produtos primários?
Muito pouco. Essa vanguarda aparece de forma apenas insular, excluindo a grande maioria dos trabalhadores e das empresas. E dessa insularidade resulta, de um lado, a desaceleração econômica e, de outro, o agravamento das desigualdades ancoradas no abismo que se vai aprofundando entre vanguardas e retaguardas.
Como interromper esse agravamento das desigualdades?
Esse dilema só pode ser quebrado se encontrarmos uma maneira de transformar a tarefa aparentemente inexequível e organizar uma forma inclusiva e efetiva desdobrando-a em partes e em etapas. E isso, em um país imenso e diverso como o nosso, nós teríamos que fazer de forma distinta em cada uma das grandes regiões. Nós não estamos fazendo isso. Estamos andando de lado. Estamos fazendo o que sempre fizemos em nossa história nacional, que é encontrar uma maneira de evadir o enfrentamento desse dilema recorrendo às nossas grandes riquezas naturais.
Alguns setores da economia são responsáveis pelo desinteresse em inovar?
Quase isso. A agricultura, a pecuária e a mineração pagam as contas do consumo urbano e nos eximem de pensar e de enfrentar esse dilema. Como o Brasil não é a Nova Zelândia, e no Brasil há mais gente do que ovelha ou boi, isso funciona apenas para atenuar o conflito ou disfarçá-lo, mas não para resolver o dilema. Estaríamos já em uma crise maior sem o agro, a pecuária e a mineração. Por outro lado, isso é uma tragédia para o Brasil. Estamos organizando uma forma de crescimento mais uma vez baseada no divórcio entre a inteligência e a natureza, e não no casamento delas.
“Estamos organizando uma forma de crescimento mais uma vez baseada no divórcio entre a inteligência e a natureza, e não no casamento delas”
Pode dar um exemplo prático?
O maior exemplo é a Amazônia. O nosso projeto de desenvolvimento é um extrativismo artesanal, sem escala, sem ciência, sem tecnologia e, portanto, sem futuro. Em vez de ser o que deveria ser, que é uma variante da economia do conhecimento, o problema subjacente da regularização fundiária e do zoneamento econômico e ecológico na Amazônia não está resolvido. E nós, então, animados pelas ONGs estrangeiras, cultivamos esse projeto meramente extrativista. No Centro-Oeste temos uma das grandes fronteiras agrícolas do mundo, graças à Embrapa, que abriu o Cerrado Brasileiro para a agricultura há meio século. Mas estagnou ali. Temos um modelo baseado na monocultura da soja e na pecuária extensiva.
O que está errado nas políticas de desenvolvimento da Amazônia?
O problema é que o Brasil pode liderar esse processo de transformação, mas não tem nenhum substituto para o agro, por enquanto. Temos uma esquerda arcaica, fantasiosa, que confunde pequenos e médios produtores na Amazônia com grileiros, e resistem à tarefa da regularização fundiária.
Já falou isso para o presidente Lula?
Sim. Quando eu estava no governo Lula, eu rapidamente identifiquei isso como prioridade. Ofereci ao presidente Lula a minuta do decreto da regularização fundiária. Ele acolheu o decreto, mas concedeu a sua execução ao PT retrógrado do Rio Grande do Sul, encastelado no Ministério de Desenvolvimento Agrário e no Incra. O presidente me perguntou, numa reunião de ministros, qual era o maior problema da Amazônia. E eu respondi de pronto: é o Rio Grande do Sul, em referência a essa realidade política.
Qual alternativa à dependência do agro?
Não precisamos abrir mão do agro. Nossa preocupação deveria ser qualificar o paradigma agropecuário, começando na recuperação das pastagens degradadas, que, recuperadas, teriam de ser o palco físico desse novo paradigma agropecuário. Então, o que proponho não é uma guerra contra o setor primário, mas é encarar o setor primário como um terreno para a própria economia avançada do conhecimento.
E como podemos agir para que a economia reaja como um todo?
Enfrentando o nosso dilema. No curto prazo, ele é a extorsão que o rentismo financeiro exerce sobre o Brasil. As contas públicas estão se degenerando lentamente. O início do processo surgiu com a política do juro alto, que não se justifica em nenhuma necessidade econômica. Trata-se de uma política sem explicação. O perfil da nossa dívida era mais favorável do que a dos grandes países do mundo. No entanto, pagamos esses juros extorsivos. Aquilo que no início era mera concessão à extorsão financista acaba em uma profecia que se autocumpre. Então, a riqueza natural, de um lado, e o papel extorsionista do cartel bancário, de outro, nos levam a esse caminho ruinoso em que ingressamos.
Qual a sua proposta para esse problema?
Minha proposta é a seguinte: o Estado brasileiro é um dos únicos do mundo em que o governo tem muitos dos instrumentos que seriam necessários para a qualificação produtiva. É o legado do corporativismo varguista. Arruinado, é verdade, mas com entidades como Embrapa, Sebrae, Senai, Senac, bancos públicos de desenvolvimento. Muitas dessas ferramentas estão pervertidas, carcomidas, porque não estão mobilizadas a favor de um projeto amplo de qualificação produtiva no rumo de construção de uma economia de conhecimento, inclusive.
“Que futuro podemos ter se a maioria da nossa força de trabalho é uma horda inorgânica, flutuante, desprotegida?”
Uma das propostas é combater a informalidade e a pejotização?
Com certeza. A precarização das relações de trabalho condena as empresas ao fracasso. E destrói a própria economia. Esse processo precisa ser revertido. Que futuro podemos ter se a maioria da nossa força de trabalho é uma horda inorgânica, flutuante, desprotegida? Não há nenhuma forma de organizar uma dinâmica inclusiva de produtividade nessas circunstâncias sociais.
Algum país do mundo conseguiu reverter esse processo de precarização?
Aconteceu nos Estados Unidos (no início do século 19), no Japão, na Alemanha e depois nos Tigres Asiáticos e na China. Em todos houve um projeto produtivista como uma variante desse processo que eu estou agora descrevendo em vocabulário contemporâneo.
Formalizar o mercado de trabalho, dentro de um ambiente de custos altos para as empresas, pode afugentar investimentos?
Não, não, não, não. Primeiro, vamos ver a realidade desse empreendedor. A maioria do País hoje é pobre, a massa brasileira, como a massa da Índia, por exemplo, é pobre e desqualificada. Os empreendedores brasileiros têm um horizonte de aspiração, de anseio, que é pequeno-burguês e não proletário. A aspiração residual da grande maioria é a pequena propriedade familiar, isolada e arcaica. Não leva a uma dinâmica de produtividade. Então, o que teria de acontecer na época em que há uma substituição do paradigma produtivo, em que o fordismo industrial está sendo substituído pela indústria do conhecimento, é que essa contraelite abordasse a maioria com uma alternativa mais produtiva que esse empreendedorismo primitivo.
Mas o sistema, hoje, incentiva esse empreendedorismo…
Incentiva nada. Veja o que acontece quando um empreendedor depende do capital financeiro. Nenhum banco está dando dinheiro a esses prestadores informais de serviço. Então, a situação real é bem diferente do discurso. É uma falácia essa história de que o Brasil é um país de empreendedores. Um grande avanço seria o Estado brasileiro começar a qualificá-los em passos modestos, mas sucessivos, cumulativos, indo na direção de um projeto produtivista.
O governo Lula III dá indícios de avanço nesses pontos?
Não. Sempre haverá exceções ou iniciativas isoladas. Mas, em geral, não temos nenhum projeto produtivista hoje. Eu acho que é um governo pouco ambicioso. É um governo conformado com aquilo que é fácil. E o que é fácil é aproveitar as vantagens comparativas existentes sem começar a procurar aliados na parte das elites brasileiras que têm potencial produtivista e compromisso nacional. É um comodismo desastroso. Agravado pelo fato de que, ao que parece, o presidente se desinteressou pelo Brasil. A prioridade individual dele agora parece ser custodiar a posição dele como celebridade global, oferecendo sugestões de pacificação para todo mundo. Esquecendo o difícil. Isso é um desastre.
Isso pode mudar nos próximos três anos?
Não acredito que isso possa mudar. E é muito injusto com o Brasil, porque o grande atributo do País é essa vitalidade extraordinária, porém primitiva. Deveríamos aproveitar essa vitalidade para fecundá-la, para transformar a espontaneidade do povo brasileiro em flexibilidade preparada. Desde Fernando Henrique Cardoso, o que está no comando do País é o mesmo casamento do rentismo financeiro com a pobreza.