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“Reoneração da folha de pagamentos vai causar muito desemprego”, diz Haroldo Ferreira, da Abicalçados

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Haroldo Ferreira, da Abicalçados: Isenção de impostos sobre importação de até US$ 50 "é uma concorrência desleal ao extremo" (Crédito: Divulgação)

Por Hugo Cilo

O gaúcho Haroldo Ferreira, presidente da maior associação do setor calçadista do País, a Abicalçados, teve uma agenda intensa nas últimas semanas. O executivo capitaneou a principal feira do setor, a Brazilian Footwear Show (BFShow), em Porto Alegre, e viajou a Brasília para lutar contra o veto do presidente Lula à permanência da desoneração da folha de pagamentos, que beneficia seu setor e que vigora desde 2011.

Só na indústria calçadista, o impacto deve ser de R$ 720 milhões por ano. “O fim da política deve gerar uma onda de desemprego na atividade, que já não teve um ano fácil. Estimamos que, logo no primeiro ano de uma possível reoneração, perderemos mais de 20 mil empregos, quase 10% da mão de obra total na indústria calçadista”, afirmou Ferreira.

A desoneração da folha de pagamentos nasceu como uma política que visa preservar empregos nas atividades que mais empregam no Brasil, mas o governo alega que não houve aumento das contratações. O mecanismo permite a substituição da contribuição previdenciária patronal de 20%, incidente sobre a folha de salários, por alíquotas que variam entre 1% e 4,5% sobre a receita bruta. No caso da indústria calçadista, a alíquota é de 1,5%. Confira, a seguir, sua entrevista:

DINHEIRO — Como foi 2023 para a indústria calçadista?
HAROLDO FERREIRA — Infelizmente, tivemos uma mudança de cenário. Estávamos muito bem até setembro, quando houve uma queda de 14% no mês. Nossa expectativa era fechar o ano com alta de 1% e 1 ,5%. Mas agora vamos fechar 2023 com retração de 1,1%.

Por quê?
Parte disso é resultado da isenção de impostos para as plataformas estrangeiras em até US$ 50. Isso está prejudicando bastante. Afeta muito o nosso varejo. Assim que a isenção foi confirmada pelo governo, os pedidos das lojas para a indústria começaram a ser segurados. As fábricas tiveram de reduzir a produção de calçados. Isso foi sentido em setembro.

Alguns polos de produção devem começar a parar nesse início de dezembro. Demissões ou férias coletivas?
Férias coletivas, por enquanto. As fábricas estão adiantando em 15 dias a parada coletiva. Não lay-off. Nosso setor não utiliza o lay-off como montadoras e outros segmentos. A indústria calçadista tenta segurar ao máximo o trabalhador, mas, em algum momento, acaba tendo que reduzir os postos de trabalho.

Mas só a isenção das plataformas está causando esse estrago?
Tem o impacto da isenção, mas tem também a queda da exportação. As vendas ao exterior reduziram bastante. A gente deve fechar o ano com 12,4% de queda na exportação. Diminuiu porque a Europa e os Estados Unidos, alguns dos principais compradores, estão em desaceleração.

E a Argentina?
Curiosamente, a Argentina está crescendo. Neste ano, o país vizinho se tornou o principal destino das exportações de calçados brasileiros. De janeiro a setembro, houve queda de 36,4% em valor para o mercado americano, com US$ 192 milhões. Já para a Argentina as exportações subiram 28,7%, com US$ 203 milhões. Uma inversão de posições.

“A isenção de impostos em até US$ 50 para as plataformas estrangeiras afeta muito o nosso varejo. Assim que ela foi confirmada pelo governo, as fábricas tiveram de reduzir a produção’’

Como o cenário político na Argentina, com a vitória de Javier Milei, pode afetar esse desempeno nos próximos meses?
A tendência é que a inflação suba no curto prazo porque tem uma corrida por dólares no país. O dólar vai subir. Vai piorar a questão de consumo e isso, naturalmente, reflete nas nossas exportações. Mas, por enquanto, são apenas conjecturas. Eleição é uma coisa, quando senta na cadeira de presidente é outra coisa. Quando ele fala na questão de rompimento com o Brasil, rompimento com a China, sair do Mercosul, vejo como discurso de candidato. A Argentina depende do Brasil nessa questão, tanto comercialmente para exportar pra cá muitos produtos, como para abastecer o seu próprio mercado.

Mas o setor trabalha com a hipótese real de a Argentina sair do Mercosul?
Seria uma lástima se realmente acontecesse isso. O Mercosul não tem evoluído muito nesses anos, mas estamos prestes a conseguir fechar o nosso grande acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Por isso, não acredito que isso vá acontecer. Acho que ele não teria base no Congresso. Não é tão simples quanto no discurso. Mas se isso acontecer, nosso imposto passaria de zero para 35%. Isso é muito ruim para o povo argentino. Se ele é um liberal extremo, pode até sair do Mercosul e não taxar as importações. Não dá para saber ainda. Temos que aguardar os próximos dias.

A dolarização da economia argentina ajuda ou atrapalha?
A população da argentina sempre se lastreou com o dólar. Então, sempre foi assim. Isso não é da noite para o dia. O impacto dessa incerteza afeta o Brasil. Mas o fato é que a Argentina precisa mais do Brasil do que nós deles. Imagine o setor automotivo. Vai faltar peça para tudo quanto é lado.

Como estão os empresários do setor sobre isso?
Os empresários do nosso setor estão também apreensivos. Eles nos fazem essa consulta, como é que vai ser. A crise da Argentina nos últimos anos já vem atrapalhando. A questão do prazo de pagamento é um problema. Eles pagam em 180 dias depois que conseguem a autorização de exportação. Ficam segurando porque não têm reservas para pagar a exportação. E o pior, muitas vezes, o importador tem dinheiro. Mesmo se o importador argentino tem reservas para pagar, não consegue fazer o pagamento. O governo argentino impõe essas restrições.

O Brasil tem como redirecionar as exportações?
Não de imediato. Tenho que ser sincero. Seria muito difícil. Mas temos como trabalhar iniciativas para buscar novos países. Mas não estamos contando com queda nas exportações para a Argentina. Seria um baque na nossa indústria. Isso não está previsto. Não estamos colocando isso na nossa previsão de produção para o próximo ano. Em 2024 vamos crescer 2,2%.

Qual será a reação do setor de calçados contra a isenção das plataformas estrangeiras?
A Abicalçados e a Assintecal [outra entidade que representa o setor] já entraram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, uma Adin, no STF. Essa é uma linha para tentar derrubar essa isenção. Dias atrás conversei com o vice-presidente e ministro Geraldo Alckmin, que está dizendo que vai voltar a ter o imposto de importação, eliminando essa isenção dos US$ 50. Essa isenção não faz nenhum sentido. Não faz nenhum sentido. Estamos confiantes de que isso vai cair a partir de janeiro.

Por que ainda não caiu?
Pelo fator político. Agora tem Natal. Não querem mexer nisso. Mas o próprio ministro Fernando Haddad, desde o início, diz que não concorda. Está prejudicando muito a produção nacional, no nosso setor, setor do vestuário, setor de brinquedos, pega muita gente. Esse é um problema. É uma concorrência desleal ao extremo. Se for manter a isenção, que isente também a indústria nacional até R$ 250.

Sem isso, o setor não cresce?
Com o fim da isenção, o setor calçadista cresce. A indústria calçadista é muito sensível. Mas há outro fator essencial: a desoneração da folha de pagamentos. Estamos apostando que vamos continuar com a desoneração da folha. Tem que continuar. Desde 2011 temos isso. Não dá para tirar agora. Todos os calçados que estão sendo vendidos aqui não estão precificados com um aumento de carga tributária. Não tem motivos para voltar. O veto tem que cair. O veto vai ser derrubado no Congresso. Afinal, o governo não está perdendo nada.

Mas o governo precisa arrecadar mais para atingir a meta de déficit zero em 2024…
Precisa cortar gastos. É o que fazemos na nossa vida particular, na nossa empresa. Alguma escolha o governo vai ter que fazer. Prejudicar os segmentos que mais empregam não pode ser uma opção. Vai causar efeito contrário. Se voltar, a reoneração da folha de pagamentos vai causar muito desemprego. Só no setor calçadista, pela nossa estimativa, mais de 20 mil postos de trabalho serão fechados em dois anos, cerca de 10% da força de trabalho.

“Prejudicar os segmentos que mais empregam não pode ser uma opção. Vai causar efeito contrário. Apoiamos que todos os setores tenham a desoneração da folha’’

Qual sua avaliação da Reforma Tributária?
A espinha dorsal que foi aprovada é boa, mas é na regulamentação que mora o perigo. O princípio da reforma, com o fim das benesses a alguns setores, é importante para simplificar e dar mais previsibilidade para os empresários na questão burocrática.

Mas a desoneração da folha que você defende, e que beneficia só 17 setores, não é uma dessas benesses que gera distorções na economia?
É por isso que apoiamos que todos os setores tenham a desoneração da folha. Desonerar quem contrata será um sinal positivo. Agora, aumentar a tributação sobre quem mais gera emprego vai na contramão da história. Se houver reoneração, vai crescer a informalidade.

E qual a estimativa do impacto da Reforma Tributária sobre o setor?
Como nada está regulamentado, hoje é muito difícil fazer projeção. Não temos nenhum estudo sobre isso ainda. Tem muita coisa para acontecer. Mas, reforço, não fazer a Reforma Tributária seria um retrocesso. O grande desafio será compensar as regiões que são menos competitivas.

Quais regiões?
Se a reforma vai acabar com a guerra fiscal e equalizar a tributação em todo o País, por que as empresas vão investir em locais distantes dos grandes centros de consumo? Quando houve a migração da indústria calçadista para o Nordeste, há 30 anos, havia uma vantagem de custo salarial. Hoje não tem mais diferença. Produzir um sapato no interior de São Paulo, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina ou no Ceará tem o mesmo custo. Então, por que as empresas vão para o interior do Ceará? Por isso surgiram os incentivos fiscais, que perduram até hoje. Uma Reforma Tributária que acaba com essa competitividade pode gerar problemas. Por essa razão, a reforma precisa prever um fundo de compensação, pensado e criado para esses locais.