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“Setor público pensa que vivemos de festa. Aqui não tem ninguém brincando”, diz Caramori Júnior, da Abrape

Líder da Associação Brasileira dos Promotores de Eventos critica excesso de regulações no setor ­— mas celebra números deste ano, já acima dos registrados em 2019, antes da pandemia

Crédito: Caio Graça

Doreni Caramori Júnior, da Associação Brasileira dos Promotores de Eventos: "Tudo o que conquistamos foi no Parlamento" (Crédito: Caio Graça)

Por Angelo Verotti

A pandemia causou estragos em diversos setores da economia mundial. No Brasil, um dos mais afetados foi o de eventos. O segmento viu a receita cair mais de 90% em 2020 e 2021 diante da suspensão das atividades. Calcula-se que as perdas chegaram a R$ 230 bilhões ­— e ao menos 900 mil eventos deixaram de ser realizados. Um período de insegurança, incerteza e, principalmente, inadimplência. Segundo a Associação Brasileira dos Promotores de Eventos (Abrape), cerca de 30% das 72 mil empresas foram à falência, com o corte de 560 mil empregos formais — um montante que nas contas dele ultrapassa a casa de 6 milhões quando se leva em conta também os trabalhadores informais do hub setorial, como operadores turísticos, segurança privada e outras 50 atividades econômicas. Dois anos depois, porém, o cenário é promissor. A entidade comandada por Doreni Caramori Júnior celebra a recuperação dos números, que já se apresentam superiores aos de 2019, com alta no volume de empregos, de empresas e de negócios. A previsão de receita para este ano é de R$ 314,2 bilhões, com 3,5 milhões de empregos.

DINHEIRO — Qual sua análise dos últimos quatro anos no setor de eventos no Brasil?
DORENI CARAMORI JÚNIOR — Nosso setor tem características estruturais e outras conjunturais. A pandemia, naturalmente, foi uma conjuntura extremamente desfavorável. Por não termos conseguido abrir as portas em boa parte do período, o setor ficou estraçalhado. Cerca de um terço das empresas [22 mil das 72 mil] quebrou. Esses dados, infelizmente, não aparecem nas estatísticas oficiais, porque ninguém fecha empresa no Brasil. Mas um terço ficou em estado falimentar. Outro terço teve muita dificuldade, se endividou. Por outro lado, de março de 2022, quando a gente considera o final das medidas restritivas, até o último relatório, em julho deste ano, 2 mil empresas do setor foram criadas.

A Covid-19 trouxe algum ganho?
O principal deles foi o associativo. Quando eu assumi o cargo em 2020 a associação tinha menos de 100 filiados. Hoje são 850 pelo País. O que a nossa entidade fez foi decorrente da união gerada pela pandemia. A Abrape percebeu que se o próprio setor não trabalhasse por si, ninguém o faria. Assim, passamos a atuar no compartilhamento de dados e na construção de políticas de mitigação dos impactos. Especialmente nas decisões governamentais.

Por qual motivo?
O setor sempre foi pouco apoiado pelo governo. Além disso, acabou utilizado para políticas públicas. A meia-entrada e a gratuidade são exemplos. O governo quer fazer uma política de acesso à cultura. Ele diz que o setor tem que viabilizar a entrada com 50% de desconto. E na pandemia, mais uma vez, nosso setor estava sendo usado para uma política pública. Mas entendemos. No final das contas, as aglomerações, que são matéria-prima do segmento de eventos, eram as grandes vilãs no combate à proliferação da Covid-19. Nesse caso, nada mais justo do que a sociedade estender um braço ao setor que parou para estender um braço à sociedade.

Quais as outras estratégias adotadas?
A gestão dos adiamentos e cancelamentos dos eventos. Porque, de fato, se tivéssemos que devolver o dinheiro dos ingressos de eventos que não puderam ser realizados, o setor quebraria de vez. Seria um conjunto enorme de judicializações. Conquistamos um Termo de Ajustamento de Conduta. Depois, três medidas provisórias se tornaram leis. Foi a primeira iniciativa para organizar o que chamamos de passivo de eventos.

“O setor sempre foi pouco apoiado pelo governo. Além disso, acabou utilizado para políticas públicas. A meia-entrada e a gratuidade são alguns exemplos”

O que ficou estabelecido?
Que deveríamos entregar os eventos, mas não éramos obrigados a devolver o dinheiro. Eu diria que atualmente esse passivo está 99,9% saneado. Em seguida, veio o dilema do crédito. Construímos um programa de crédito especialmente para micro e pequenas empresas. E 20% do valor do Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte) foi direcionado às empresas do setor, para resolver um problema sério. Depois, veio a questão dos passivos tributários.

As dívidas eram muito altas?
O setor tinha, a exemplo dos demais, endividamento fiscal, que começou a vencer e a ser executado pelo Estado. Com isso, a conta das empresas que já enfrentam dificuldades começou a ser bloqueada. Ao final disso a gente tinha passivo de eventos, passivo financeiro, que eram os créditos com banco, e o passivo fiscal. E precisávamos construir uma medida para o setor não quebrar quando voltasse, tendo em vista que teria de pagar os passivos. Foi a desoneração fiscal. Hoje, somos desonerados de impostos federais até 2027. Uma medida para pagar o passivo acumulado na pandemia.

As adversidades foram superadas?
Tudo isso faz parte do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos. Também houve uma organização importante da entidade no Congresso, na criação da nossa frente parlamentar. Fizemos missões a Brasília com 300 empresários. Foi um pano de fundo para um trabalho de mitigação dos impactos da pandemia no setor.

Como está o setor atualmente?
Já retomou 100% da movimentação econômica de antes da pandemia. Na verdade, estamos 12% acima do que era em 2019. E o emprego já está 15% acima. É prova de que voltou a recuperar a sua capacidade de investimento, recontratou mão de obra e, eventualmente, está indo além, com novos eventos e novas tours internacionais.

Os segmentos foram igualmente afetados?
Há uma minoria que conseguiu construir nichos que deram certo alívio. Mas, durante a pandemia, nenhum deles atingiu 15% da receita anterior à Covid-19. Todos foram muito impactados.

A quais nichos se refere?
Alguns segmentos criaram as lives. Já os segmentos de negócios, congressos e feiras conseguiram realizar os eventos virtuais de maneira mais sistêmica. Tiveram os drive-ins, que em alguns casos também funcionaram.

E os desafios atuais?
Vivemos uma inflação de custos muito alta. Imagine que num setor em que um terço das empresas quebrou, também um terço dos fornecedores quebrou. Com menos fornecedores, existe menor concorrência e, naturalmente, o preço sobe. Há redução de margem, necessidade da busca pela competitividade. Houve em vários elos da cadeia produtiva uma desestruturação que gerou aumento significativo de custos acima da inflação nacional. Digo que, de 2022 para 2021, a gente teve uma inflação de custo de pelo menos 35%.

“Antes, 40% a 50% dos tíquetesceram comprados de forma on-line. O restante, só presencialmente. Hoje, as vendas físicas não passam de 10%

Acredita na normalização?
Vai haver, mas em dois a três anos. Porque o nosso setor não é linear, como um de commodities. A normalização vem pela negociação, então é mais lenta do que um preço que cai comoditizado.

Quais as transformações desde 2020?
A digitalização foi acelerada pela pandemia. Antes, a gente tinha média de 40%, 50% de compras on-line de tíquetes. O restante era de compra física. Hoje a compra no ponto de vendas não passa de 10% no Brasil. Todos aprenderam a comprar pela internet.

Quais as tendências para o setor?
Além da formalização por meio da associação, a profissionalização vem na sequência. O setor, até em razão desse processo de sair acelerado da pandemia, passou a ser interessante também para o capital financeiro. Você já começa a ver iniciativas de fundos setoriais investindo, inclusive empresas de outros países. E com isso vem o processo de profissionalização, mesmo de lideranças. Outra tendência deve ser por nicho e segmentação de eventos. Com a digitalização e as redes sociais chegando às pessoas, você começa a fazer os nichos serem mais relevantes. Você passa a ter eventos como oportunidade para segmentos diferentes.

A quanto corresponde a participação das empresas estrangeiras nos eventos?
Acho que menos de 5% dos eventos são de empresas estrangeiras. Os três grandes setores que elas operam são espaços de eventos, feiras e shows internacionais. Mas como o Brasil é muito grande, para o número macro do mercado nacional, você tem dificuldade. Você tem 5 mil municípios, mas hoje as empresas internacionais operam em 20, 30, que são os maiores.

Como tem sido a relação do segmento com o governo federal?
As coisas mais estruturantes do setor não foram conquistadas nem no governo Bolsonaro nem no governo Lula. Foram conquistadas no parlamento. Porque, no final, o que nós vamos discutir para responder a tua pergunta são todas as coisas incrementais. Ambos os governos tentaram dificultar as medidas, e o parlamento foi o nosso grande apoiador. Agora, das coisas mais periféricas, que foram as que os governos atuavam, eu diria que a gente tem uma mudança de postura com relação a essa questão dos benefícios sociais que se tenta fazer através do setor de eventos.

De que forma?
O governo Bolsonaro debatia a indenização das gratuidades. Você quer dar ingresso de graça para o professor, o que pode até ser meritório. Quem é que vai pagar essa conta? Então, vamos ver aqui uma forma de o Estado mitigar isso. No governo Lula, você já não vê essa discussão. Pelo contrário. Você vê uma pressão por aumento de políticas desse tipo.

A situação então pode ser complicar?
Haja vista, por exemplo, essa portaria recente. Acontece um problema [a morte da estudante Ana Clara Benevides na apresentação da cantora americana Taylor Swift, no Rio de Janeiro] num show. É uma fatalidade. Não há responsabilidade direta do promotor de eventos. Mas no dia seguinte nasce uma portaria dizendo que, agora, o setor não só tem que dar água a cliente, como tem que deixar entrar com água mineral no recinto. Não detalha, não discute.

Até que ponto esse incidente no Rio impacta o setor?
Não dá para saber. Acredito que naturalmente as coisas vão se adaptar. Não é razoável você permitir entrar com uma garrafinha num recinto. Em relação ao fornecimento de água para os clientes, já existem eventos que disponibilizam. E sem a necessidade de briga.

E como ficará agora?
Temos um governo com sensibilidade social que quis mostrar que agiu. Vamos debater esse tema. A Abrape construiu um papel forte de liderar o setor e de interagir bem em Brasília. Acho que o grande desafio que tivemos na pandemia foi mostrar isso, porque o setor público pensa que nós vivemos de festa. Não é festa. O deputado tem que entender que um show não é uma coisa que acontece naquele dia. Aqui não tem ninguém brincando. Entendemos que esse tipo de medida não pode ser feita no ímpeto. Tem que ser planejada e estruturada como em qualquer outro setor econômico.