“A água é um bem escasso no mundo”, diz Renata Ramalhosa, CEO da Beta-I
“Os portos brasileiros podem atuar em muito mais áreas”
Por Beto Silva
Nascida em São Tomé e Príncipe, na África, radicada em Portugal, na Europa, Renata Ramalhosa estudou em Londres, trabalhou por 18 anos no governo britânico e foi cônsul-adjunta do Reino Unido no Brasil. Deixou a carreira diplomática de lado para atuar em inovação aberta com foco em sustentabilidade. Fundadora e CEO da consultoria Beta-i, sua missão é criar um ecossistema de empresas e startups interessadas em avançar na economia azul, para uso mais inteligente dos recursos marinhos. Na visão de Ramalhosa, os portos do País podem ser mais do que apenas um local de embarque e desembarque de pessoas e mercadorias.
Como começou interesse pela sustentabilidade?
Estudei química em Londres. Depois de dois anos descobri que não era uma pessoa para ficar em laboratório. Conversei com uma professora que disse que teria mais a ver comigo engenharia do meio ambiente. Foi transformador. Lá, os trabalhos acadêmicos são para a indústria, de necessidades reais. Esse pragmatismo me agradou muito, pois sou uma pessoa prática. Fui para outros países. Na Holanda me especializei em água e saneamento, por causa dos canais que existem por lá. Depois fui para a França trabalhar em uma empresa de baterias que queria fazer reciclagem de chumbo.
E como ingressou no governo britânico?
O Reino Unido foi importante para mim, além da parte acadêmica. Tive a oportunidade de ser selecionada para atuar no governo britânico para trabalhar em tecnologia para o meio ambiente, análise das condições climáticas e mercado de carbono. Vivíamos o Protocolo de Kioto, altamente dinamizador, e o Reino Unido estava a liderar essa agenda na Europa. Foram 18 anos por lá. Depois entrei para a diplomacia econômica.
No Brasil, é possível avançar mais nessa conexão entre universidade e mercado?
Estados Unidos, Europa e China têm essa visão. Mas é algo muito difícil quebrar isso. Tem de haver sabedoria para ser ganha-ganha, com acordo grande entre governo, academia e setor privado. Temos alguns casos no Brasil, em São Paulo, Bahia… Mas é preciso expandir. Para que a pesquisa não deixe de ser disruptiva, não deixe de pensar no futuro, mas olhe também os desafios do presente. Quando se olha o número de deep techs no País, que são as startups focadas em P&D, é muito baixo. Isso é um indicador dessa conversão entre ciência e mercado, que merece uma atenção maior. Existe uma massa crítica forte na ciência brasileira. É importante transformar isso em valor.
Quando o Brasil entra na sua vida?
Fui para São Paulo como consul-geral-adjunta. Foram quatro anos muito intensos de muito trabalho. Uma imersão no Brasil não só na política, mas junto ao empresariado, muito sofisticado e pouco conhecido no mundo. Sempre acreditei que uma das pontes entre o Brasil e o Reino Unido era o empreendedorismo e inovação. Criamos uma estratégica focada nisso. Mas a vida do servidor público não é fácil. E resolvi empreender por aqui.
O que falta para melhorar a imagem do empresariado brasileiro mundo afora?
Os empreendedores brasileiros são incríveis. Ocorre que o brasileiro não precisa ir para fora do País para ser bem-sucedido. O mercado interno é muito grande. Exige foco por aqui. Não tem tradição de internacionalizar as marcas. Exceção a grandes grupos na agropecuária, papel e celulose. JBS e Suzano são líderes globais de seus setores. Temos que contar mais essas boas histórias para inspirar outras. Queremos mudar isso, principalmente nas startups, para saberem o que se passa nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. Percebo que há vontade dos novos empreendedores de ir para o exterior. As fintechs já têm tido boa visibilidade fora do Brasil. As agrotechs também. Para as PMEs pode ser muito interessante esse movimento.
Como está seu trabalho em economia azul?
O Brasil tem já uma estratégia de economia azul de defesa. O sudeste asiático começou muito mais cedo nesse tema, com aquilo que é o futuro dos portos. Eles vão mudar radicalmente o modelo de negócio dos portos. A Europa também. Com estímulos aos portos para serem azuis [com projetos voltados à preservação dos oceanos] e verdes [ações para preservação da natureza em terra]. Produção de energia, produção de algas, protetores da zona econômica exclusiva, saneamento… Para serem cada vez mais uma indústrias da água. Esse conceito é cada vez mais forte, para criar ecossistema de startup e empreendedores ligados a esses desafios. A água é um bem escasso no mundo. Pensamos em desafios para trazer soluções tecnológicas e inovadoras para resolver algo que indústria tradicional não está a resolver. Estados Unidos e Canadá também estão engajados. Brasil e América Latina menos. É isso que queremos despertar.
Como tem sido sua atuação nesse processo?
Temos projeto junto ao Governo do Rio de Janeiro, que tem desenvolvido um plano para a economia azul. Faz sentido também criar um ecossistema de startups com foco nisso. Pela Beta-i, criamos o Programa Blue Rio, de inovação aberta, juntamente com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Convidamos empresas privadas e startups que querem fazer parte dessa jornada. Temos desafios que se conectam. Temos de pensar quais são os problemas do estado, seja em água, saneamento, sustentabilidade, navegação energia e logística. São esses nossos grandes pilares. Temos envolvidas a Vibra Energia e a Galp (portuguesa), Águas do Rio (concessionária da Aegea) e Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro), Secretaria Estadual do Meio Ambiente, Oceanpact, Porto do Açu e Wilson Sons. São mais de 300 startups de 46 países interessadas em trabalhar no projeto. Estamos a definir os pilotos. É possível estabelecer esse ecossistema quando se tem metodologia e processo.
Sobre mudança de conceito dos portos, o que é possível avançar?
Até hoje eles são meros gestores de uma pequena costa, para logística de carga. Algo bastante focado na atividade de transporte de mercadoria, importação e exportação. Hoje em dia os portos podem ser produtores de energia, seja eólica offshore ou a partir das ondas. Também pode-se pensar algicultura (cultura das algas). A alga é multiuso, pode ser usada para fabricação de cosmético, alimento, biomassa de energia… Estamos a ver uma diversificação de negócios dos portos, por várias razões. Para ter variação de negócios, para responder exigências cada vez maiores de ESG e maximizar a economia costeira, seja com produção de energia, novos parques para turismo, com redução da pegada de carbono para vender carbono no mercado. Os portos podem atuar em muito mais áreas.
Onde isso está mais avançado?
Sudeste asiático e Europa estão mais avançados. Canadá e costa leste americana também. Na Beta-i trabalhamos com 360 portos para pensar nisso tudo. Levando startups para resolverem os problemas. E também com atração de fundos de investimentos, que estão cada vez mais exigentes na agenda ESG e, claro, no retorno desses aportes.
O Brasil está atrasado?
Acredito que ainda existe muitos portos públicos, apena alguns privados. Há diferenças importantes entre um e outro. O Porto Sul, na Bahia, tem essa visão, de ser um empreendimento azul e verde. Há cada vez mais por parte do setor portuário de ser mais sistêmico, com mais clareza da sua função.