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Gol em rota turbulenta: por que a companhia preocupa tanto o mercado

Com endividamento de R$ 20 bilhões, companhia aérea brasileira pode recorrer à recuperação judicial nos Estados Unidos para evitar a falência

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Gol sob pressão: dívidas de curto prazo somam R$ 3 bilhões (Crédito: Divulgação)

Por Hugo Cilo

As três maiores companhias aéreas brasileiras ­— Azul, Gol e Latam ­— travaram uma guerra pela liderança no ranking de pontualidade em 2023, disputa vencida pela Azul, com 85,51% de acerto do horário combinado, segundo a consultoria americana Cirium. Logo depois vieram a Latam (84%) e a Gol (76,63%). Mas não é bem essa falta de pontualidade que mais tem incomodado a última colocada. Com endividamento de R$ 20 bilhões e R$ 60 milhões a pagar até quarta-feira (31), a empresa corre contra o tempo para reestruturar sua operação e evitar que seu nome entre para a lista onde estão Varig, Vasp, Avianca Brasil e, mais recentemente, ITA Transportes Aéreos. As dívidas de curto prazo da Gol somam R$ 3 bilhões: R$ 1,1 bilhão em dívida financeira e R$ 1,8 bilhão em pagamentos de arrendamento de aeronaves.

• Os esforços da Gol para virar o jogo estão em curso. Fontes da companhia consultadas pela DINHEIRO afirmam que está pronta a documentação para o pedido de recuperação judicial nos Estados Unidos, onde a companhia tem capital aberto desde 2004, ano em que também passou a negociar ações na então Bovespa.

• No mercado americano, as empresas com alto grau de endividamento recorrem ao chamado Chapter 11 (capítulo 11 da Lei de Falências do país) para evitar processos bilionários de indenização aos acionistas prejudicados por uma eventual hiperdesvalorização das ações ou mesmo bancarrota.

• Ao contrário da lei brasileira de recuperação judicial, mais longânime com a causa patronal, a lei americana é vista como dura com empresas que deixam a situação chegar à beira do colapso e também é considerada mais pró-mercado, credores e funcionários. Com razão. Na semana passada, após circular a notícia da eventual recuperação judicial nos Estados Unidos, a Gol perdeu em quatro dias R$ 1 bilhão em valor de mercado na B3. No ano, os papéis acumulam queda de 21%.

• Se confirmada a recuperação judicial da Gol nos próximos dias, a empresa terá fôlego para renegociar com bancos e, principalmente, os chamados lessores — fundos que compram as aeronaves, como Airbus, Boeing, Bombardier e Embraer — e alugam em formato de leasing para as empresas de aviação comercial.

• Antes mesmo de formalizar a recuperação judicial, a Gol pode usar a intenção de iniciar negociações com os donos de aeronaves. Historicamente, essas negociações extrajudiciais costumam ser mais favoráveis às lessores do que em uma eventual reestruturação com mediação dos tribunais.

Procurada pela reportagem, a Gol não quis comentar sobre uma possível recuperação judicial e informou, por nota, que continua seus esforços para melhorar a lucratividade e fortalecer seu balanço. “A Gol está em discussões com seus stakeholders financeiros sobre diversas opções que tragam maior flexibilidade financeira, incluindo capital adicional para financiar as operações”, afirmou a empresa. “Todas as ações visam posicionar a Gol para o sucesso de longo prazo, à medida que a companhia continua a cumprir sua missão de democratizar o transporte aéreo no Brasil.”

Celso Ferrer, CEO da Gol: “A companhia está operando em boa performance e, por isso, acreditamos que eles estão abertos a negociar” (Crédito:Divulgação)

Um dos argumentos da companhia para o endividamento de R$ 20 bilhões quase sete vezes mais do que os R$ 3 bilhões de valor de mercado — recai sobre a pandemia. Com a suspensão de voos e fechamento de fronteiras por Europa, Estados Unidos e América do Sul, destinos que respondiam por grande parte da receita da empresa, a Gol foi fortemente afetada.

Mas, obviamente, não foi a única. Todo o mercado de leasing passou apuros por ter de hibernar uma grande quantidade de aviões, que foram devolvidos aos lessores e hoje não estão disponíveis às frotas das companhias aéreas brasileiras para recuperar as receitas com a volta da demanda.

As dificuldades da Gol mostram que é preciso ter uma atenção especial do governo sobre o setor aéreo, na avaliação do consultor Ricardo Fenelon, ex-diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e sócio do Fenelon Barretto Rost Advogados. Ele avalia que um país com dimensões continentais como o Brasil precisa de companhias aéreas robustas do ponto de vista financeiro.

“Não há crescimento econômico sem o transporte aéreo de pessoas que fazem negócios, turistas e cargas”, afirmou Fenelon. “Tanto é assim que os Estados Unidos sempre ajudaram suas empresas aéreas em momentos críticos. Não há dúvidas de que o setor aéreo no Brasil tem um problema estrutural de custos, não só problemas de gestão”, disse.

Entre 2014 e 2022, o prejuízo total das empresas foi de quase R$ 50 bilhões. Só na pandemia foram R$ 35 bilhões de prejuízo.

Especialistas avaliam que a recuperação judicial pode ser a única saída para a companhia manter as operações e garantir a oferta de serviços aos passageiros (Crédito: Neto Talmeli)

Se entrar em recuperação judicial nos Estados Unidos, a Gol seguirá o mesmo caminho da Latam. Ela também recorreu ao pedido de ajuda à justiça americana e obteve sucesso na negociação das dívidas com os credores, em uma manobra bem executada pelo CEO Jerome Cadier. A Latam quase foi comprada pela Azul, em uma oferta surpresa, mas conseguiu evitar o negócio aos 45 minutos do segundo tempo.

Apesar dos temores em torno da recuperação judicial, esse é um caminho — talvez o único — para a empresa garantir as operações e evitar descumprimento de voos, segundo a especialista em setor aéreo Isadora Santos, fundadora da startup Destina, de viagens internacionais. “É a saída mais assertiva para dar à Gol o respiro necessário para seguir com a operação de forma mais sustentável a médio e longo prazo”, disse. “Acredito que ainda não seja o momento para a fusão, pensando que as concorrentes, como a Latam, passaram por situação parecida há poucos anos e, mesmo não tendo alcançado o equilíbrio entre custo e entradas de receita, estão se recuperando aos poucos e demonstrando crescimento sobre os números de 2020.”

Entre 2014 e 2022, o prejuízo total das empresas aéreas foi de quase R$ 50 bilhões. Só na pandemia foram R$ 35 bilhões de prejuízo (Crédito:Eduardo Knapp/)

O horizonte turbulento para a Gol não tem gerado, pelo menos na aparência, grandes preocupações na cúpula da companhia. O CEO, Celso Ferrer, afirmou que vai encontrar “uma solução definitiva” com os credores em breve. “Nossa exposição aos arrendadores é muito parecida a dos competidores”, disse Ferrer, durante encontro promovido para investidores e analistas na sede da empresa, no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. “A companhia está operando em boa performance e por isso acreditamos que eles estão abertos a negociar.”

Ferrer é homem de confiança do empresário Constantino de Oliveira Júnior, filho do fundador, Nenê Constantino, e presidente do Conselho de Administração da companhia. Ferrer assumiu o manche da Gol no ano passado, depois que Paulo Kakinoff deixou a empresa para assumir a presidência da seguradora Porto Seguro.

ALTO RISCO

O que parece um problema para a Gol pode significar um grande risco para os investidores, na visão do economista João Lucas Tonello, analista da Benndorf Research. Segundo ele, analisando os indicadores financeiros da empresa (GOLL4), pode não ser uma boa opção de investimento por diversas razões. “Há uma série de indicadores extremamente negativos, além de uma possível gestão ineficiente do capital de giro”, disse. “Em segundo lugar, a relação entre dívida líquida e patrimônio líquido, bem como o índice de passivos e ativos, apontam para uma situação de endividamento significativo. O valor elevado do passivo em relação aos ativos e a baixa liquidez corrente aumentam a preocupação sobre a capacidade de cumprir obrigações de curto prazo.”

O economista Gabriel Meira, especialista da Valor Investimentos, concorda com Tonello que a Gol virou ativo de alto risco. Para ele, a melhor recomendação é ficar de fora e aguardar os desdobramentos da eventual recuperação judicial. “Se o pedido for negado em assembleia com credores, será decretada a falência e os bens da companhia vão a leilão. E mesmo antes disso, há riscos de queda de 10%, 15% ou 20% nas próximas semanas.”

Diante desse turbulento e complexo plano de voo, a grande preocupação da Gol nas próximas semanas será com a agenda da reestruturação e com os prazos das dívidas. Desta vez, a pontualidade será decisiva para o sucesso ou fracasso da companhia.