“Ter senso crítico e adaptabilidade é fundamental ao novo profissional”, diz Débora Mioranzza, da Degreed
Executiva está na vanguarda da formação de pessoas para o atual mercado de trabalho: versáteis e preparados para um universo cada vez mais de incertezas e transformações
Por Edson Rossi
Formada em publicidade pela PUC de Campinas (SP), Débora Mioranzza está há seis anos na Degreed, plataforma global de qualificação e formação da força de trabalho, na qual é vice-presidente de Vendas para o mercado das Américas. A companhia, que fará 12 anos no mês que vem, já é um unicórnio — as rodadas de financiamento (que estão na Série D) somam US$ 335 milhões. São mais de 500 funcionários, 400 clientes em 33 países, plataforma traduzida em 30 idiomas e soluções que já impactaram 8 milhões de usuários ativados em 400 mil trilhas de aprendizagem. Esse mundaréu de dados tem um único objetivo: revolucionar o modo como as pessoas se capacitam nos tempos atuais, de um mercado de trabalho em acelerada transformação. Para ela, focar na construção de habilidades será decisivo. “Elas são inclusivas porque democratizam as oportunidades no mercado de trabalho”, afirmou a VP à DINHEIRO.
DINHEIRO — Na última prova Pisa, que mede a performance de estudantes do ensino médio de 80 países e cujos resultados foram divulgados em dezembro, o Brasil ficou onde sempre está. No fim da fila. Tivemos desempenho abaixo da média em Leitura (52º lugar), Ciências (61º) e Matemática (64º). Não é exatamente o foco da Degreed ter soluções para o ensino público, mas o quanto a tecnologia pode resolver problemas da educação em países como o nosso?
DÉBORA MIORANZZA — Essa também é uma das razões para eu estar na Degreed. É muito a missão da empresa. Em países como o Brasil, onde o sistema de educação é tão precário, você não consegue dar acesso [de qualidade] a toda a população e as empresas passam a ter uma responsabilidade muito grande. É aí que entram soluções de tecnologia, o papel de startups de tecnologia. Trabalhar muito próximo das empresas privadas para dar a oportunidade de capacitar as pessoas de forma on-line e melhorar essa força de trabalho para entrar no mercado.
Mas o mundo corporativo se preocupa particularmente com o seu universo imediato, o colaborador, a primeira linha de stakeholders, e não tanto com o público amplo, não?
Com a pandemia, e o pós-pandemia, a gente viu uma onda muito grande de treinamento e engajamento em plataformas de educação como Coursera, Udemy, viu as faculdades abrindo para outros públicos o portfólio de cursos on-line… Então houve um boom nesse sentido. E muitas empresas começaram também a se conscientizar da necessidade de elas abrirem [esses cursos] até para quem ainda não era colaborador. E agora começam a ter um olhar diferente. Estendem os programas de treinamento para o público externo. Para fornecedores, famílias, amigos. Há uma responsabilidade muito grande envolvida e também existe uma oportunidade gigantesca para o Brasil.
“Vivemos um momento único, de diferentes gerações trabalhando juntas. É um grande desafio. Mas também uma grande oportunidade”
Por quê?
Por uma questão comportamental. Eu trabalho com o mercado Américas. No Brasil, o percentual de adoção de tecnologias mais inovadoras é muito maior do que em qualquer outro país.
As companhias privadas entram num jogo ganha-ganha?
As empresas começam a ver que a inclusão digital, e não somente dos colaboradores, vai fortalecer a marca e, principalmente, ajudar na qualificação da força de trabalho que hoje é uma das maiores dificuldades, não só do Brasil: ter uma força qualificada. Principalmente com as transformações vindas da tecnologia.
As lideranças empresariais brasileiras têm alguma característica exclusiva em relação aos líderes dos demais países em que a Degreed atua?
A conscientização no Brasil é muito maior. Você ainda vê muito a questão de empresas familiares, que são bem hierárquicas. É preciso passar anos dentro de uma organização para poder crescer, e isso dá um vínculo com o colaborador que acaba passando muito mais pela parte emocional que puramente transacional. Essas empresas acabam tendo uma preocupação muito grande com o colaborador, uma pessoa que faz parte da história daquela empresa. Então há essa cultura de cuidar não somente dele como também da família dele. Isso muitas vezes é muito maior do que no exterior.
E o que predomina mais no exterior?
Aí a gente já vê uma movimentação, que o Brasil também acompanha, de produzir um impacto maior na parte de diversidade e inclusão. Focam mais nos públicos minorizados, que não têm tanto acesso.
“Três habilidades são decisivas no mercado de hoje. Senso crítico, adaptabilidade e learning agility, a agilidade e rapidez para aprender”
Há algo que vale tanto ao mercado da América Latina quanto ao americano?
A mobilidade interna. E a gente fala hoje de um momento único, porque várias gerações trabalham juntas ao mesmo tempo. É muito comum você ver Baby Boomers e Geração Z juntas. Têm de tomar decisões em conjunto. Isso é um grande desafio. Mas é uma grande oportunidade também para as companhias.
Por quê?
Os boomers são vistos como tendo uma lealdade muito maior com a empresa. Mas essa lealdade a gente coloca entre aspas porque a Geração Z tem também lealdade, desde que ela consiga se mover rapidamente. Não precisa ser recebendo promoções. É lateral. Indo para oportunidades. Trabalhando em squads. Ganhando habilidades. Então, para que você consiga reter esse talento precisa construir oportunidades de mobilidade interna e programas de desenvolvimento. E os Baby Boomers vão sendo mais usados na parte de mentoria. Para ensinar. É um movimento muito interessante.
Hoje vocês têm 400 mil trilhas de aprendizagem. Há tanto conhecimento assim?
Além dessas 400 mil trilhas, a gente já mapeou 36 milhões de habilidades na plataforma. Você começa a ver nas companhias [que buscam estar na vanguarda] uma mudança bem significativa na forma de pensar. São empresas que têm como prioridade se tornar skills-based organizations. Corporações baseadas em habilidades. Então quando a gente fala de 36 milhões de habilidades mapeadas você fala de equalizar todos os talentos.
De que maneira?
Independentemente da idade, da raça, do gênero, quando você começa a falar em habilidades você pode mover as pessoas dentro das corporações e na sociedade. Por exemplo. Se antes você olhava e dizia, ‘ah, tal pessoa é formada na USP e pode ser considerada para a vaga’, hoje você diz, ‘ah, tal pessoa não tem esse diploma, mas ela já tem tantas habilidades, que são difíceis de achar no mercado, que ela pode ser considerada para a vaga’. Você consegue começar a encaixar todo mundo. Todos podem ser vistos de uma forma igual.
Uma plataforma que disponibiliza um número tão sideral de habilidades também é transformadora em relação ao modelo de aprendizado convencional, não. Esse modelo à antiga acabou?
No modelo por habilidades, você é empoderado no que quer se desenvolver. A gente foge do aprendizado convencional, baseado em sala de aula, com currículo já construído, e passa para um em que a pessoa possa construir a jornada dela.Olhamos para onde está doendo realmente para você se desenvolver naquelas habilidades, independentemente da área. A competência começa a se fragmentar no nível de aplicabilidade. ‘Ah, eu quero uma competência de liderança, mas o que está por trás da liderança?’.
E existe alguma habilidade para o profissional destes tempos que te chame mais a atenção? Ou que você indique como a principal tendência?
Citaria três. A primeira é pensamento crítico. Hoje, com ChatGPT, inteligência artificial (IA), você precisa desenvolver o pensamento crítico. Até mesmo na hora de fazer uma curadoria. [É fundamental] para os conteúdos que você consome, para te ajudar no trabalho. Pensamento crítico é importantíssimo.
A segunda?
Adaptabilidade. Por conta de toda essa rápida transformação e, em especial, se a gente linkar isso com a mobilidade interna, que é extremamente necessária para que as empresas consigam sobreviver ao clima econômico que temos hoje. Por exemplo, a Cisco, cliente nosso, chegou a nomear 3 mil posições de trabalho. Todas linkadas a habilidades necessárias com nível de granularidade muito maior do que simplesmente dizer ‘você precisa ter sido um líder por dez anos para ocupar tal vaga’. O que isso quer dizer dentro da Cisco? Quer dizer que ela está buscando pessoas que saibam se adaptar a diferentes estilos de trabalho e de gerações. Essa é uma habilidade nova.
E a terceira?
Learning agility. A agilidade de aprender. Tudo muito rápido. Sai do tradicional. A educação tradicional não deixa de existir, você ainda vai para programas de MBA, graduação formal, pós-graduação, tá, mas você precisa saber sobre o que é ChatGPT. Vou ter de fazer quatro anos de graduação ou posso entrar num curso de uma semana e aprender a utilizá-lo? Há algo que seja uma habilidade básica, um mínimo denomidar comum? Todo mundo precisa entender o básico de tecnologia. Não é apenas abrir o computador e começar a trabalhar. O que é ataque cibernético? Como funciona a inteligência artificial? O que é proteção de dados? Tudo isso é o novo básico.
Isso vai impactar em novas funções?
Hoje nos Estados Unidos está muito em alta o cargo de Chief AI Officer. Outro que ainda não chegou no Brasil, Chief Learning Officer. A gente ainda não tem.
Você chegou a VP de uma empresa de tecnologia. Mas ainda é uma área de forte barreira de gênero. Como mudar isso?
Comecei na tecnologia em 2010. Enfrentei muita discriminação, direta, indireta… Ao mesmo tempo eu acredito que é um dos segmentos que mais deveriam ter mulheres. Quero ser mãe e trabalhar remotamente facilita. Tecnologia é um dos melhores mercados para mulheres, para equilibrar a vida pessoal com o trabalho. Mas, lógico, temos de conscientizar as mulheres disso.
Para encerrar. Por falar em habilidades, qual você traz de seus pais e que gostaria de deixar como sua marca, seu legado?
Na minha família, sou a primeira pessoa a se formar na faculdade. Minha mãe fez apenas o supletivo. Meu pai, menos. Estudou apenas três anos. Era da roça, no Rio Grande do Sul, e foi para o interior de São Paulo (para Assis, cidade onde Débora nasceu). Era um autodidata e se tornou empreendedor. E ambos focaram muito em investir na nossa educação. O maior exemplo que deixaram, me ensinaram, principalmente meu pai, foi a de ser uma mulher empoderada. Ter uma régua muito alta. Eu nunca deixei que as dificuldades me limitassem. É isso que quero deixar como marca, como legado. Que ninguém para a gente.