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Milei 100 dias

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Edson Rossi: "É fato, contudo, que não será apenas nas relações comerciais com o Brasil — ou a China, ou quem quer que seja — que os problemas da Argentina se resolverão" (Crédito: Divulgação)

Por Edson Rossi

Há uma evidente distância entre narrativa e realidade. Entre os muitos motivos para isso, todos levam a Javier Milei. O presidente dos argentinos completa na terça-feira (19) 100 dias na cadeira. Incerto como sempre, questionado como nunca. Para isso, colabora seu repertório pantomímico. Um tango ruim e desastrado. No pacote entram a relação adolescente com Donald Trump e o flerte com o bolsonarismo, mais alimentado pelo lado de cá da fronteira. Pelo lado de lá, vieram caneladas em Lula — que atravessou a linha da boa diplomacia ao escancarar sua predileção pelo candidato derrotado Sergio Massa. Junte-se nesse caldo os ataques ao Mercosul e novo embaixador. Tudo amplifica na claque brasileira esse mau humor com Milei.

Como escapar dessa leitura mais ideológica e entender para onde caminha a Argentina? Olhando os dados. Afinal, a Argentina é nosso terceiro maior destino de exportações, atrás de China e EUA. No ano passado, exportamos US$ 16,7 bilhões. Importamos US$ 12 bilhões. Estes US$ 4,7 bilhões de saldo são dólares que saem de lá, aumentando o preço da moeda americana e tensionando o pagamento de juros. Num país deficitário e endividado, é inflacionário e letal. Por isso, aos olhos de Buenos Aires, ou ao menos aos olhos do novo governo, o Brasil é uma espécie de relação tóxica. Não à toa o comércio entre os dois países já desabou. As exportações brasileiras caíram 28% no primeiro bimestre de 2024 em relação a 2023. As exportações argentinas caíram 14%. Em resumo, o saldo negativo dos vizinhos contraiu de US$ 604 milhões para US$ 192 milhões — 68% melhor. Nada mal para dois meses. Por essas, Milei olha pra gente e diz, “não é nada pessoal, são só negócios”.

É fato, contudo, que não será apenas nas relações comerciais com o Brasil — ou a China, ou quem quer que seja — que os problemas da Argentina se resolverão. Até porque ao arrumar a casa (se conseguir), as transações entre Buenos Aires e Brasília voltarão a crescer. Na tentativa de limpar a bagunça doméstica, o ministro da Economia, Luis Caputo, conseguiu um golaço na terça-feira (12). Costurou um acordo para postergar o pagamento de dívidas (em peso) que totalizam US$ 55 bilhões e venceriam este ano. Elas serão quitadas entre 2025 e 2028, sem juros reais. Foram rolados 77,5% (US$ 42,6 bilhões). Qualquer um que já precisou fazer engenharia de alongamento de dívida sabe o valor desse tipo de conquista.

Mas num país tão entranhado de Estado por todos os poros, é claro que o setor público foi o principal propulsor da proposta. BC, Banco de la Nación, FGS (fundo soberano do país) detinham dois terços desses títulos e aportaram quase a totalidade deles na negociação. Pelo lado privado, investidores institucionais (bancos, fundos de investimento, seguradoras) entraram com 17,5% de suas posições. De todo modo, é considerável respiro a Milei-Caputo.

Já entre os temas que impactam mais o dia a dia do cidadão comum, como a inflação (anunciada na terça-feira, 12), há duas visões. Ainda está em 276,2% (em 12 meses). Mas a taxa mensal cai: 25,5% (dezembro), 20,6% (janeiro) e 13,2% (fevereiro). Deverá existir rebote em março, por causa do item Educação, mas segmentos sensíveis, como Alimentos & Bebidas (não alcoólicas) teve quase um estrangulamento: 29,7% (dezembro), 20,4% (janeiro) e 11,9% (fevereiro). E o governo não quer problemas. Tanto que acaba de efetivar um pacote para facilitar a importação de alimentos, bebidas e produtos de higiene & limpeza da cesta básica.

Milei-Caputo projetam inflação em um dígito até meados do ano. Provocar a dor agora e o bem depois é a estratégia. A taxa de desocupação não é alta (5,7%) e pela cartilha econômica tradicional, seguida à risca pela dupla, provocar desaceleração é caminho para domar a inflação. Por isso a atividade industrial cai: -12,4% em janeiro, na comparação interanual, tendo retração em todas as nove subcategorias. Números que revoltam o empresariado. Não se pode esquecer, no entanto, que parte dele é vinculada de forma moralmente indefensável a sucessivos governos. Se do lado privado vem tijoladas, do lado político não muda muito. Neste campo, porém, deve surgir uma trégua por um motivo péssimo: a crise de narcoviolência em Rosario, terceira maior cidade do país. A onda de crimes virou tema do parlamento e tirou o foco da economia.

Ler os números sobre o que acontece com a Argentina tem sido mais eficaz que ler as notícias. E fundamental para entender se (e como) o país conseguirá se livrar de seus índices indecentes. E nem falo de crescimento, déficit público ou inflação, embora isso tudo esteja na origem. Falo de dois temas nucleares. 1) Pobreza. Quatro em cada dez argentinos vive abaixo da linha de pobreza. 2) Crianças. Relatório que acaba de ser divulgado pela Unicef diz que sete a cada dez delas vivem na pobreza. São 8,8 milhões de crianças e adolescentes (até 17 anos) num país com 46,4 milhões de habitantes. Domar a hiperinflação e trazer justiça social via crescimento econômico é o desafio. O resto é narrativa de arquibancada.