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Americanas troca fraude e dívida por crescimento; entenda o plano

Sob comando do CEO Leonardo Coelho, especialista em gestão de crises, a varejista reduz o rombo de R$ 43 bilhões para cerca de R$ 1,8 bilhão, antecipa quitação de passivos trabalhistas e já enxerga a volta ao lucro em 2025. Conheça os planos da empresa para dar a volta por cima

Crédito: Claudio Gatti

Leonardo Coelho, CEO da Americanas: "Passaremos de uma dívida de quase R$ 43 bilhões para R$ 1,8 bilhão. Se considerar recebíveis e o que tem em caixa, a dívida líquida vai ser negativa” (Crédito: Claudio Gatti)

Por Hugo Cilo

RESUMO

• Maior e mais complexo plano de recuperação da história corporativa brasileira já está desenhado
• Nas mãos de Leonardo Coelho, CEO da rede varejista Americanas, prevê deságio de mais de 70% de parte do passivo
• Isso sem contar leilões, capitalização e troca de dívida por ações e debêntures, além dos pagamentos já realizados

• Empresa deve passar de dívida de quase R$ 43 bilhões para R$ 1,875 bilhão, que é o total da nova dívida bruta com as debêntures

Desde fevereiro do ano passado, o executivo mato-grossense Leonardo Coelho, CEO da rede varejista Americanas, é um rosto conhecido da ponte aérea Jacarepaguá-Congonhas, rota que liga o Rio de Janeiro a São Paulo com aviões monomotores Cessna Grand Caravan, da Azul Linhas Aéreas. Depois de trabalhar por 13 anos na subsidiária brasileira da Siemens ele se tornou especialista em salvar companhias ao atuar no escritório de reestruturações Alvarez & Marsal (A&M). Agora, além das turbulências no trajeto aéreo que faz toda semana, ele enfrenta o que pode ser considerado o maior e mais complexo plano de recuperação da história corporativa brasileira. Sua missão: reconstruir a gigante varejista que acumulou cerca de R$ 43 bilhões em dívidas após anos de fraudes.

O vaivém do CEO pouco chamaria a atenção não fosse por um fato: a Americanas possuía, até o começo deste mês, um jatinho Embraer Phenom 300, adquirido em 2014 por R$ 25,6 milhões. A aeronave acaba de ser leiloada por US$ 9 milhões (cerca de R$ 47 milhões). “Vendemos esse avião por coerência. Não posso estar em recuperação judicial e ter um jatinho que fazia mais da metade dos seus voos entre Rio e São Paulo. Não fazia sentido. Para isso temos Azul, Gol e Latam”, afirmou o CEO, em entrevista exclusiva à DINHEIRO.

Centro de Distribuição da Americanas mantém normalmente operação nas lojas físicas e no digital enquanto a recuperação corre em paralelo (Crédito:Divulgação )

Por trás do desapego (e da racionalidade) existe um plano maior e mais ambicioso. Depois de a gestão fraudulenta da Americanas ter sido revelada pelo ex-CEO Sergio Rial (também ex-CEO do Santander Brasil), o mercado passou a duvidar da capacidade de sobrevivência da varejista.

Mas desde que Coelho assumiu o comando, tem conseguido acelerar a recuperação.

O endividamento vai recuar para cerca de R$ 1,8 bilhão.
O cálculo, aprovado em dezembro na RJ, considera deságio de mais de 70% de parte do passivo, leilões, capitalização e troca de dívida por ações e debêntures, além do que já foi quitado pela empresa.
“No desenho que definimos na recuperação judicial, a gente sai desse processo, provavelmente em meados deste ano, com uma situação de balanço extremamente confortável”, afirmou o CEO.
“Passaremos de uma dívida de quase R$ 43 bilhões, sem contar a parte relacionada, para R$ 1,875 bilhão, que é o total da nova dívida bruta com as debêntures. Se considerar recebíveis e o que tem em caixa, a dívida líquida vai ser negativa. Não vamos ter dívida.”

SOCORRO BILIONÁRIO

O plano da Americanas, que tem como sócios os bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, da 3G Capital, é colocar para rodar uma estratégia de reinvenção operacional. O trio injetou do próprio bolso R$ 3,5 bilhões para garantir o fluxo de pagamento dos compromissos financeiros assumidos na RJ, em um momento em que as vendas no site desabaram mais de 80% e as linhas de crédito secaram diante do ceticismo da capacidade de reação. “Houve uma estrondosa destruição de riqueza dos acionistas, da empresa e dos stakeholders”, disse Oscar Malvessi, professor de Finanças Corporativas da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP) e consultor em criação de valor. “Todas as qualidades que formavam a excelente reputação dos três principais fundadores [Lemann, Telles e Sicupira] caíram por terra.”

Leonardo Coelho, CEO da empresa (à esq.), e Sergio Rial, ex-CEO que revelou a fraude, deram explicações sobre Americanas em CPI no Congresso (Crédito:Lula Marques/ Agência Brasil)

Enquanto os sócios e os atuais executivos tentam consertar a companhia, o ex-presidente Miguel Gutierrez e seu time de ex-diretores (Anna Christina Saicali, José Timotheo de Barros, Márcio Meirelles, Fábio Abrate, Flávia Carneiro e Marcelo Nunes) seguem sob investigação da Polícia Federal. Assim como Gutierrez, que hoje vive na Espanha, os executivos não foram encontrados pela DINHEIRO para comentar as acusações. Na CPI da Americanas, em agosto do ano passado, no Congresso, eles ficaram em silêncio.

O plano de ação da Americanas, definido pelo atual CEO, consiste em quatro etapas principais:
• estancar a crise,
• fortalecer a geração de caixa operacional,
• resgatar a cultura de uma empresa de varejo,
• e retomar o crescimento.

Com dinheiro em caixa, a companhia tem mostrado que está acelerando a arrumação da casa. Na segunda-feira (18), a empresa quitou as dívidas com credores trabalhistas e com os pequenos e microempreendedores.

Divididos em três categorias de credores, essa primeira etapa de pagamento prevista na RJ da varejista totaliza R$ 4 bilhões. “O início da fase de pagamentos destrava a reestruturação financeira, com a retomada de prazo junto aos fornecedores”, informou a Americanas, em nota.

De acordo com a empresa, os cerca de 500 fornecedores contemplados nesta fase de pagamentos representaram 70% das vendas nas lojas físicas em 2023. Eles receberão seus créditos sem deságio, a não ser que tenham optado pela quitação por valor menor que o de face. Esses 500 fornecedores foram os que aderiram a essa opção até 13 de março e se mostraram “dispostos a voltar a dar crédito para a companhia”.

(Claudio Gatti)

Em fevereiro de 2023, a Americanas já havia pago aproximadamente R$ 115 milhões às duas primeiras classes de credores que foram priorizados no plano de recuperação judicial. A ação, no entanto, foi suspensa pela Justiça a pedido de uma instituição financeira credora.

Após a publicação da homologação do plano no dia 27 de fevereiro de 2023, na 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, a Americanas retomou os pagamentos, e quitou mais de R$ 100 milhões.

A varejista ainda informou que, dos R$ 3,7 bilhões em recursos para a parcela única de fornecedores colaboradores, R$ 3,5 bilhões são referentes ao novo financiamento realizado pelos acionistas de referência da companhia no início deste mês.

Em fevereiro, a Justiça do Rio de Janeiro aceitou proposta de empréstimo à Americanas por Lemann, Telles e Sicupira, para garantir capital de giro à empresa.

A diretora financeira da Americanas, Camille Faria, afirmou que o começo dos pagamentos é um divisor de águas no processo de recuperação da companhia. “Estamos disciplinados e totalmente comprometidos com a execução do plano nos termos aprovados pelos credores, o que permite, desde já, o reperfilamento da dívida e o devido foco na geração de caixa operacional de forma sustentável”, disse a executiva. Ela acredita que a maior parte do plano será implementado até o fim do primeiro semestre.

O trio (da esq. à dir.) Beto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles fez injeção de R$ 3,5 bilhões para sustentar a liquidez durante a renegociação com credores e garantir a volta à normalidade (Crédito:Divulgação )
Embraer Phenom 300, que antes era de uso particular da diretoria da Americanas, foi arrematado no início do mês para reforçar o caixa da empresa (Crédito:Divulgação )

REESTRUTURAÇÃO

• A reconstrução da Americanas inclui vender de ativos e enxugar a estrutura.

• O mix de produtos oferecidos foi revisto, com a descontinuidade da venda de televisores, linha branca e produtos de informática.

• Das 1,7 mil lojas no País, 130 já foram fechadas, com a extinção de pouco mais de 800 vagas ­— entre demissões ou a não reposição de funcionários que pediram para sair.

• Outras 80 unidades, segundo Coelho, também devem ser fechadas neste ano.

A companhia mantém hoje 35 mil funcionários, mas deve encolher.

“Alguns ajustes serão necessários. Para ter a flexibilidade de poder fazer algum negócio, podemos vender parte do nosso marketplace ou mesmo a fintech Ame. Se aparecer uma boa proposta, a gente vende. Se não aparecer, seguimos tocando esses ativos. Eles são parte integrante do nosso plano de recuperação aqui dentro”, disse Coelho.

“Assim como o avião, que vendemos por coerência, estamos avaliando o fechamento de lojas menos rentáveis e a abertura de unidades em locais de grande potencial, como no interior e Nordeste do País. Tudo dentro da mesma lógica e coerência. Se depender do plano de Coelho para a Americanas, ele ainda será visto com muita frequência nos monomotores comerciais da rota Jacarepaguá-Congonhas nos próximos anos.

ENTREVISTA: Leonardo Coelho, CEO da Americanas

“A empresa passou os últimos cinco anos administrando fraude, não os negócios”

(Claudio Gatti)

O plano de recuperação judicial está seguindo o cronograma?
Está bastante próximo do que a gente planejou. Quando chegamos, não conhecíamos a empresa. Dividimos a companhia em três bolhas de trabalho nesse primeiro momento. A primeira é recuperação judicial. Tocamos a RJ com os assessores financeiros e com os jurídicos. A segunda bolha, que funcionou muito bem, foi a da investigação. Criamos um desenho inicial para dar todas as informações, toda a transparência para todo mundo que estiver investigando. Só que aí veio a CPI, que acabou sendo um fator para a gente antecipar algumas evidências que já tínhamos dentro de casa. A terceira parte do planejamento era focar na operação, melhorando as vendas e a performance operacional. Conseguimos manter a maior parte dos nossos 35 mil colaboradores focados exclusivamente na operação.

Ao investigar a fraude na empresa, encontrou outras surpresas?
Praticamente tudo o que encontramos era surpresa. Acho que os únicos que não ficaram surpresos foram aquelas pessoas que fizeram parte do processo de fraude. Percebemos que a empresa passou os últimos cinco anos administrando fraude, não administrando os negócios.

Qual estratégia para transformar a Americanas em um caso bem-sucedido de recuperação?
O primeiro componente passa por unificar a cultura. Havia a cultura do varejo físico, que acreditava que a Americanas era uma senhorinha lá de 1929. Havia a cultura do varejo digital, com o pensamento de empresa de tecnologia. E existia uma terceira, de fintech, com a AME, que não agia como varejo, mas como um banco digital que angariava os seus clientes no varejo físico e no digital. Havia formas distintas de gerir o negócio. Decidimos unificar essas três culturas em uma única, que tem que passar por aquilo que sempre foi valor da Americanas.

Qual valor?
Simplicidade e austeridade, como todo varejo tem de ser, seja físico ou digital. Com rapidez, velocidade entre a tomada de decisão e a implantação.

Simplicidade e austeridade com gastança, desvios e até jatinho?
A gente está evoluindo. O processo não está terminado. Temos visto uma mentalidade cada vez mais coesa dentro de todos os negócios do grupo. Vendemos o jatinho por uma questão de coerência.

Como uma fraude de R$ 43 bilhões não foi vista por ninguém?
Acho que vale a pena dizer claramente: no caso de auditorias e bancos, eles não participaram da fraude. Estava tudo amarradinho. Ninguém percebia. Conselho não percebeu. Auditorias não perceberam. Bancos não viram. Não perceberam porque o risco sacado é uma operação muito utilizada e muito conhecida. A manipulação dolosa dos sistemas de controle interno fez com que as certificadoras de governança não enxergassem também. E como o risco sacado era contabilizado como contas a pagar e não como uma dívida, então ficava tudo meio que consolidado na mesma rubrica dentro do balanço.

O fato de o Sergio Rial ter sido CEO do Santander, um banco ligado à operação de risco sacado da Americanas, ajudou a identificar a fraude?
Está claro que foi doloso. Mas essa não é uma fraude que se consegue perpetuar. Chega um momento que as próprias instituições financeiras que conhecem as operações de crédito começam a falar que você tomou todo o seu limite. Eu acho que estava chegando no final mesmo. Com o Sergio, sem o Sergio. O ciclo estava se encerrando.

O que esperar das investigações?
Espero o ressarcimento. Ação criminal não está com a gente, mas vamos atrás de todo mundo que participou da fraude para buscar esse ressarcimento. Na minha visão, a gente não passa desse ano de 2024 sem ter um indiciamento de quem fez essa fraude.