“Carros a combustão e eletrificados ainda vão conviver por muito tempo”, diz Ricardo Gondo, da Renault
Executivo avalia como positiva a concorrência com as marcas chinesas, principalmente as que estão trazendo elétricos e híbridos para o mercado nacional, mas afirma que as regras precisam ser iguais a todos
Por Hugo Cilo
Desde que o executivo Ricardo Gondo assumiu a presidência da Renault no Brasil, em janeiro de 2019, sua vida passou a girar em torno de um tema: definir quanto, quando e como investir no País. Em meio a um tsunami de lançamentos de carros elétricos e híbridos, sua postura tem sido de cautela. Como apenas 1,5% das vendas totais do mercado nacional em 2023 foram de automóveis puramente elétricos, a Renault aposta no lançamento de modelos ainda 100% a combustão, mas com maior eficiência energética. Em entrevista à DINHEIRO, Gondo afirmou que a transição energética por aqui será mais suave do que na Europa e que o nível de exigência ambiental e de segurança no Brasil tem de ser coerente com o poder de compra do consumidor. “Existe um limite no Brasil em questão de custos e preços. Se a indústria embarcar nos carros novos todas as novas tecnologias existentes, boa parte dos consumidores não tem como comprar”, afirmou.
DINHEIRO – A Renault acaba de anunciar oito lançamentos, dentro de um ciclo de investimentos de R$ 5,1 bilhões. Qual a ambição da marca com essa ofensiva?
RICARDO GONDO – Os lançamentos fazem parte do International Game Plan 2027, que é um plano global da marca Renault. Aqui para o Brasil, o que nós já temos decidido é o Kardian, que acabamos de lançar, e um novo SUV compacto, que vamos lançar em breve com a mesma plataforma, que é uma solução global. Com esses modelos temos grande expectativa de crescimento. Não posso abrir os números sobre projeções de participação de mercado, mas posso garantir que iremos acompanhar a recuperação do mercado brasileiro. Em 2012, ele havia sido de 3,6 milhões de carros. Em 2023, foi de 2,1 milhões. Em 2024, o mercado local deve chegar a 2,3 milhões. Então, existe muito potencial.
“Em vários aspectos, a exigência da legislação brasileira é até maior do que na Europa. E muito maior do que em países como Colômbia, Argentina e México’’
Mais montadoras estão apostando no segmento de híbridos flex, já que problemas de infraestrutura têm prejudicado o segmento de elétricos. Por que a Renault está insistindo no motor a combustão?
Na nossa avaliação, carros a combustão e eletrificados vão conviver por muito tempo. Se olharmos para Europa, veremos isso acontecendo hoje. Desde 2012 a Renault comercializa veículos elétricos no mercado europeu. Repito: desde 2012. A Renault foi pioneira nesse segmento. Mas, se olharmos para os dados de 2023, 50% das vendas na Europa continuam sendo de veículos com motores a combustão interna. Da outra metade, 33% são híbridos, seja híbridos leves até os híbridos plug-in. Só 17% são carros puramente elétricos. Então, mesmo na Europa, 12 anos depois, os elétricos ainda são uma fatia menor. E como o Brasil está muito atrás do que acontece na Europa, vemos que a transição será gradativa. Ainda que com os incentivos para elétrico lá fora, a mudança vai levar um certo tempo.
Quanto tempo?
Não sei exatamente, mas nossa transição energética será mais suave do que em outros países, como os da Europa, a China ou os Estados Unidos. Como no Brasil temos o etanol, e dominamos a tecnologia flex, a pressão é menor. No ano passado, só 1,5% dos carros vendidos eram 100% elétricos.
A legislação é mais frouxa no Brasil?
Não. Em vários aspectos, a exigência da legislação brasileira é até maior do que na Europa. O tema de gases evaporativos, ou seja, o índice de evaporação do combustível no tanque, é um exemplo. No Brasil, a gente precisa estar em limites inferiores do que exige a legislação europeia ou a americana. Não é só nisso. Em aspectos de emissões, eficiência energética e segurança, o Brasil está entre os mais rígidos. E é com certeza muito mais exigente do que países como Colômbia, Argentina e México.
Esse nível de exigência é empecilho para os investimentos?
Não é impeditivo para novos investimentos. É ótimo que o Brasil tenha uma legislação de primeiro mundo em relação a emissões e segurança. É bom para os clientes, é bom para o mercado. A única ressalva é que o nível de exigência precisa ser equilibrado. Tudo isso tem de ser implementando pouco a pouco. Afinal, existe um limite no Brasil em questão de custos e preços. Se a indústria embarcar nos carros todas as novas tecnologias existentes, boa parte dos consumidores não terá como comprar. É preciso ter coerência entre as exigências e a capacidade de compra dos brasileiros.
Está faltando coerência?
Não. As montadoras, representadas pela Anfavea, estão atuando junto ao governo para buscar esse equilíbrio. Estamos trabalhando juntos. Caminhando bem. O mais importante é sempre ter diálogo para poder fazer ajustes. Porque todas as montadoras, incluindo nós na Renault, têm tecnologia para aplicar. Mas, no final das contas, a gente tem de introduzir essas novas tecnologias de um lado e pensar no cliente e no mercado consumidor, de outro. O preço do carro não pode ser impeditivo.
No caso da descarbonização da frota, há mais discurso do que prática?
Vejo que o tema descarbonização passa, sim, pela eletrificação. No entanto, na realidade de hoje a descarbonização é também a busca por mais eficiência energética dos motores a combustão. Motores mais eficientes compõem esse processo de transição energética. Em função disso, a gente definiu como prioridade o tema consumo. Esse modelo Kardian que acabamos de lançar tem um motor turbo 1.0, com três cilindros e 125 cavalos. É o maior torque da categoria. Isso que significa para o cliente maior agilidade na cidade e menor consumo. Comparado com os nossos melhores competidores diretos, o consumo na cidade é 8% menor.
Não é pouco em um mercado que está lançando tantos elétricos e híbridos? Nos últimos meses, Stellantis, Volkswagen, Toyota e outras montadoras chinesas já anunciaram mais de R$ 100 bilhões em investimentos…
Nosso ciclo de investimentos entre 2021 e 2025 é de R$ 5,1 bilhões. O próximo ciclo será anunciado em breve, e não será pouco. Mas os valores ainda estão sendo definidos. Mas o que estamos mirando agora é o segmento que mais cresce, o de SUVs e os B-SUVS, que são os compactos. Muitos consumidores estão migrando do segmento hatches para os SUVs compacto. E estamos trabalhando junto com a Horse no desenvolvimento de motor híbrido flex para o mercado brasileiro. Terminamos 2023 com 5,8% de market share. Vamos crescer. Esse o nosso foco.
Esse crescimento leva em conta a concorrência com as marcas chinesas, como BYD e GWM, que estão chegando com muito apetite? O Kwid perdeu espaço para concorrentes como o Dolphin…
Olha, o Kwid é um bom exemplo de carro aliado da descarbonização. É um modelo compacto, moderno, leve e urbano. Por ser moderno, o Kwid a combustão emite apenas 84 gramas de CO2 por quilômetro rodado. Se compararmos com os híbridos vendidos no Brasil, eles emitem mais do que 84 gramas de CO2 por quilômetro. Por quê? Porque a hibridização começou com carros maiores, motores maiores, carros mais pesados. Então, quando se coloca eficiência energética nesse conjunto, a redução nas emissões é superior.
“Seja na concorrência com chinesas ou qualquer outra marca, não podemos ter fatores que desequilibrem o mercado. Defendemos previsibilidade e isonomia’’
Mesmo assim, a concorrência com os chineses não preocupa?
Concorrência é sempre importante e boa. A Renault tem 125 anos de história. Então, já enfrentamos todo tipo de concorrência. Dentro da história da indústria da automobilística, já passamos por diversas ondas de competição acirrada. Enfrentamos marcas japonesas, marcas americanas e outras marcas europeias. No Brasil não foi diferente. A Renault foi uma das primeiras a chegar e disputamos com ondas em 1998, 1999 e 2000, quando vieram outras marcas francesas, outras marcas japonesas e coreanas. Então, isso faz parte da história.
Mas a concorrência era, geralmente, com produtos baseados em uma mesma tecnologia. Não havia elétricos…
Sim, o que está acontecendo hoje é uma transformação tecnológica no mundo do automóvel. A chegada desses novos concorrentes faz com que todo mundo tenha de buscar novas soluções para continuar competitivo no mercado. Por isso estamos sempre trabalhando em novos projetos. Quando um ciclo de investimento termina, logo outro começa. Definimos esses investimentos em um trabalho constante dos times aqui no Brasil com as equipes da Renault na América. Para validar novos investimentos, há um trabalho complexo. Os recursos que aportamos hoje foram decididos lá em 2021. Naquela época, em função da crise, a gente definia ciclos de investimento mais curtos com a matriz. Agora, talvez tenhamos aprovação de ciclos mais longos.
Esses investimentos dependem de incentivo do governo?
Não. O que defendemos, via Anfavea, é que quem investiu e segue investindo no Brasil teria uma cota isenta de imposto de importação. Quem já produz por aqui poderia importar algum volume sem imposto. Os nossos investimentos independem da aprovação da nova fase do Rota 2030. Seja na concorrência com chineses ou qualquer outra marca, não podemos ter fatores que desequilibrem o mercado. O que nós defendemos é previsibilidade e isonomia.
Como a conjuntura econômica no Brasil, especialmente juros e câmbio, influencia esses investimentos?
A queda da taxa de juros é superimportante. Nos últimos anos vimos isso. Com a Selic alta, 70% das vendas eram à vista. Só 30% dos carros eram financiados. Quando os juros estavam baixos, em 2018 e 2019, a proporção era inversa. Isso ajuda a explicar a redução do mercado e a crise em muitas empresas do setor. Sem falar que a inadimplência dispara quando os juros estão altos. Agora, com juros em queda, inflação controlada e inadimplência em baixa, o cenário é obviamente mais positivo. Essa conjuntura econômica, que inclui a confiança mais elevada do consumidor e desemprego em visível queda, ajuda nas vendas. Além disso, quando a gente analisa os custos de capital, juros baixos ajudam demais.
E o dólar?
Mais importante do que a cotação do dólar é a estabilidade. Seja o dólar ou o euro, que é a moeda que impacta nos nossos resultados, a boa notícia é que nos últimos meses estão mais estáveis frente ao real. E assim espero que continue.