“Preferiria não fazer”: os desafios da Geração Z no mercado de trabalho

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Dante Gallian: "Desconfio que se configura aqui um verdadeiro desencontro de visões sobre o mundo e sobre a vida: sonhos, projetos, concepções profundas sobre o próprio sentido da existência" (Crédito: Divulgação)

Por Dante Gallian

O escritor norte-americano Herman Melville (1819-1891) é mundialmente conhecido por seu grande romance Moby Dick, porém ele também escreveu alguns contos que, se não tão famosos, são igualmente inspiradores. Em um deles, intitulado Bartleby, o escrivão, um narrador, que se identifica como advogado, sócio de um escritório estabelecido em Wall Street, conta um caso que, segundo ele, foi um dos mais estranhos que aconteceu em toda sua vida.

Vendo-se na necessidade de substituir um dos escrivães do escritório, contrata, às pressas, um jovem um tanto quanto taciturno, mas que transmitia uma calma que talvez fosse proveitosa para o ambiente laboral, caracterizado pelo nervosismo e agitação competitiva. Havendo iniciado seu trabalho com competência e entusiasmo, em um certo momento, ao ser solicitado para um serviço específico, o jovem Bartleby responde laconicamente: “preferiria não fazer”. Imaginando não ter entendido bem a resposta do funcionário, o advogado narrador pede que lhe repita o que havia dito, e Bartleby, com toda a calma do mundo, volta a dizer: “Preferiria não”. Atônito, sem entender nada e sem saber como processar a atitude do novato, o patrão reprime seu primeiro impulso, que era o de demiti-lo sumariamente, e decide dar uma nova chance ao jovenzinho. No dia seguinte, porém, quando lhe solicita a revisão de um documento, Bartleby desfere, sempre com toda tranquilidade, a mesma resposta: “Preferiria não fazer”. E assim se sucedem os dias e as negativas de Bartleby, levando o patrão a um estado de oscilação emocional no qual sentimentos de raiva, indignação, curiosidade e pena se revezam e entram em conflito. Ao final do conto (fique tranquilo, não darei spoiler), o narrador faz uma descoberta que lhe faz exclamar: “Oh Bartleby! Oh humanidade!”.

Lembrei deste conto quando, nas últimas semanas, me deparei com dezenas de artigos sobre o ingresso da Geração Z no mundo do trabalho. Muitos gestores e executivos têm comentado e, principalmente, se questionado sobre como lidar com esses jovens que muitas vezes apresentam um comportamento semelhante ao do escrivão Bartleby. Percebo, não apenas pelas matérias na imprensa especializada, mas pelas conversas com amigos gestores e representantes dessa geração, que o que se vive atualmente vai além de um simples choque geracional. Desconfio que se configura aqui um verdadeiro desencontro de visões sobre o mundo e sobre a vida: sonhos, projetos, concepções profundas sobre o próprio sentido da existência. E, claro, a questão vai muito além da versão atual do “preferiria não fazer” de Bartleby, que poderia perfeitamente se encaixar no conceito de quiet quitting ou demissão silenciosa.

O fenômeno como um todo é desafiador e exige discernimento. Se por um lado a reação reativa por parte de alguns líderes — que resolvem a questão diagnosticando o comportamento da geração Z como simples “mi-mi-mi” — mostra-se ineficaz e destrutiva, por outro há uma perspectiva que tende a superestimar os novos Bartleby, sem procurar analisar criticamente as causas e consequências da cultura do “preferiria não fazer”, criando-se o risco de uma crise desastrosa. Em meu entender, o atual conflito apresenta uma oportunidade extraordinária para revermos conceitos e percepções que transcendem o âmbito da gestão corporativa.

Procurar compreender o que pensa a geração Z e por que assim pensa, ao mesmo tempo em que se os convida a conhecer e entender a maneira de ser e de pensar das gerações mais velhas, parece-me ser a melhor forma de se enfrentar o presente desafio. E, como sempre, minha sugestão é a de se recorrer à literatura como ponto de partida; como instrumento interpelador e provocador de reflexão e discussão conjunta. Nesse sentido, começar por Bartleby, o escrivão e o seu “preferiria não fazer” poderia ser uma alternativa divertida e frutuosa.

Dante Gallian é doutor em História pela USP, coordenador do Laboratório de Leitura da Escola Paulista de Medicina e autor de Responsabilidade humanística — uma proposta para a agenda ESG (Poligrafia Editora)