O ano excepcional para o mercado acionário nos EUA
A interrupção da tendência de alta é apenas uma parada ou o início de uma queda?
Por Vitoria Saddi*
É preciso colocar o dedo na ferida: o mercado sempre foi incapaz de antecipar as grandes crises financeiras. De 1929 a 2009, apenas alguns poucos conseguiram antecipar corretamente o final do ciclo de alta. Isso posto, é obrigatório dizer que este vem sendo um ano excepcional para o mercado de ações americano e tem prevalecido a tese do ‘momentum’. Este é um fenômeno que se refere à tendência de ações que estão subindo continuarem a performar bem no curto e médio prazo, enquanto aquelas que estão performando mal tendem a continuar a ter um desempenho fraco. Essa observação é baseada na ideia de que movimentos de preços de ações podem persistir por um período específico devido a fatores como comportamento do investidor, reações a notícias ou tendências econômicas amplas.
Há uma vasta gama de evidências de que a economia americana está crescendo acima da tendência de longo prazo e a inflação está estagnada acima da meta. Assim, as expectativas de queda de juros caíram ainda mais, o que levou a uma desaceleração do ritmo de alta dos principais índices, como o S&P 500 e o Nasdaq. O último dado de PIB dos EUA, de 1,6%, sugere um desaquecimento no primeiro tri. O consumo (em termos reais) não caiu na margem enquanto o investimento real privado (residencial e não residencial) está subindo assim como o setor manufatureiro. A medida de inflação preferida pelo Fed — o PCE (personal consumption expenditure) — aumentou 0,3% em março de 2024 e a taxa anual chegou a 2,7% contra previsão de 2,6%.
O mercado antecipou tal situação muito antes da divulgação de tais dados. A evidência dessa antecipação é o rally do mercado de ações que começou em outubro de 2023 e terminou em abril de 2024. A questão a ser explorada neste artigo é se a recente interrupção da alta do mercado de ações pode significar apenas um período de lateralidade ou se é o final da tendência.
De todo modo, as crises que ocorreram nos EUA (e no mundo) nos últimos 100 anos possuem causas extremamente comuns, e até banais. No livro This Time Is Different: Eight Centuries of Financial Folly, Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff argumentam que os ciclos de boom financeiro e subsequentes colapsos são uma característica constante da economia global ao longo de oito séculos. Apesar das frequentes alegações de que “desta vez é diferente”, os padrões de crise financeira são notavelmente consistentes e previsíveis. O livro mostra como a excessiva acumulação de dívida, tanto pública quanto privada, frequentemente precede grandes crises financeiras, desmistificando a noção de que as economias modernas estão imunes aos fracassos do passado devido a avanços na gestão econômica ou inovações financeiras.
A atual situação fiscal dos Estados Unidos não é pouco alentadora. A dívida/PIB do país atingiu 129%. Uma alta relação dívida/PIB é preocupante, pois indica que um país pode estar se endividando em um ritmo que supera o crescimento econômico. Isso pode levar a uma série de problemas que, por sua vez, poderiam impactar negativamente o mercado de ações. O primeiro deles é quanto à sustentabilidade da dívida do governo. Os investidores podem temer que o governo tenha dificuldades para honrar sua dívida e assim exigir taxas de juros mais altas para compensar esse risco. Isso torna o crédito mais caro e reduz a atividade econômica, os lucros e assim, os preços das ações. O atual governo Biden não irá implementar nenhuma política fiscal com vistas a estabilizar (ou reduzir) a relação dívida/PIB.
Ninguém sabe se a interrupção da alta do mercado americano é temporária ou não. De um lado, temos a mudança estrutural trazida pela inteligência artificial e o fato de o mercado acionário estar apenas no início desta precificação. Neste caso, trata-se apenas de um respiro do mercado com uma retomada da tendência de alta em muito breve. De outro lado, temos a acelerada piora fiscal e a ausência de medidas fiscais compensatórias por parte do governo. Assim, o posicionamento dos candidatos com relação a tal tema no debate presidencial é crucial para termos uma ideia mais clara do futuro próximo. Mas a história diz duas coisas: que ser irresponsável fiscalmente e (ou) apostar que o ganho alto não embute risco são afirmações falsas.
*VITORIA SADDI é estrategista da SM Futures. Dirigiu a mesa de derivativos do JP Morgan e foi economista-chefe do Roubini Global Economics, Citibank, Salomon Brothers e Queluz Asset, em Londres, Nova York e São Paulo. Também foi professora na California State University, na University of Southern California e no Insper. É PhD em economia pela University of Southern California.