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A inversão da curva de juros americana e a dominância fiscal

A alta brutal dos retornos dos títulos está ligada à piora das contas públicas do país. A relação dívida/PIB nunca esteve tão alta e atingiu 130%

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Vitoria Saddi: "A recessão emerge porque os bancos centrais preferem errar para cima e manter a política contracionista a terminar o ciclo de alta antes da inflação baixar" (Crédito: Divulgação)

Por Vitoria Saddi

A inclinação da curva de juros americana (medida como a diferença entre o título de 10 anos e o de 2 anos) está invertida desde julho de 2022. Este é o período mais longo de inversão da curva na série histórica nos Estados Unidos. O fenômeno da inversão ocorre sempre que a taxa de juros dos títulos de curto prazo excede a taxa de juros dos títulos de longo prazo. A ideia é que tal inversão seja um potencial precursor de uma recessão. O principal objetivo do presente artigo é avaliar a reação dos investidores e o significado de tal problema no atual contexto dos Estados Unidos.

O conceito da curva de juros tem início com títulos de diferentes ‘durations’ e é baseado nos títulos do tesouro americano. Estes são considerados ativos ‘livres de risco’, com probabilidade nula de eventual ‘calote’ da dívida pública americana. Em diferentes graus, eles integram uma parcela significativa das reservas internacionais de vários países, como Brasil e China. Uma forma simples de entender a curva de juros é olhar as taxas de juros, ou ‘yields’, pagos pelo tesouro americano com ‘durations’ de três meses, dois, cinco, dez e trinta anos. Os investidores em geral esperam obter um rendimento maior quanto maior for a ‘duration’ do título. Assim, em termos normais, o título de trinta anos paga mais do que um título de 2 meses, por exemplo. Esta é a curva normal de juros, que ocorre quando os ‘yields’ sobem à medida que o prazo de resgate (‘duration’) aumenta.

Quando a curva fica invertida as taxas dos títulos curtos passam a ser maiores do que as dos longos. A inversão pode ser vista como o Federal Reserve aumentando as taxas de juros de curto prazo acima da taxa de juros neutra (a taxa que não provoca nem inflação nem desemprego). Ninguém sabe ao certo o valor preciso de tal taxa neutra. Ainda assim, as taxas de longo prazo, ajustadas pela inflação, são uma boa proxy para tanto. Taxas curtas muito acima da taxa neutra tendem a desaquecer a economia até a chegada da recessão. A recessão emerge porque os bancos centrais preferem errar para cima e manter a política contracionista a terminar o ciclo de alta antes da inflação baixar.

Há três formas de analisar a inversão da curva. A primeira delas é tratar a mesma como um problema de informação, inerente ao mercado de títulos (renda fixa). A inversão expressa a visão dos investidores do mercado sobre a inflação futura e crescimento da economia. A segunda forma é uma espécie de profecia autorrealizável. Neste caso quando as empresas percebem a inversão da curva elas se tornam mais cuidadosas nos seus investimentos e contratações futuras. Isso faz com a que a ameaça de recessão se torne ainda mais presente. A terceira explicação é a visão causal. Esta última nos diz que se a autoridade monetária promover uma política monetária contracionista por bastante tempo, de modo abrupto e rápido você conseguirá promover uma recessão.

Muito embora não se saiba quando o Fed irá baixar juros é pouco provável que as taxas voltem a subir este ano. Não obstante, o retorno dos títulos de 10 anos está no segundo maior nível desde 2007; o de 30 anos desde 2011 e dos 10 anos atrelado a inflação desde 2009. A alta brutal dos retornos dos títulos parece estar relacionada à piora fiscal do país. A relação dívida/PIB nunca esteve tão alta e atingiu 130%. O fato da relação dívida/PIB estar no pico de 130% levou as agências de risco a rebaixarem a nota da dívida pública americana. O financiamento do déficit fiscal ocorre via venda de títulos públicos de diversos vencimentos. A venda de tais títulos leva a um aumento dos retornos e explica a alta dos títulos de médio e longo prazo. Tal fenômeno é conhecido como dominância fiscal. Este problema emerge sempre que existe um banco central comprometido com a meta de inflação que está subindo juros (e, portanto, vendendo títulos) e um tesouro nacional que não tem compromisso com a estabilidade fiscal e precisa financiar seu déficit via venda de títulos públicos. Neste sentido, a alta de juros por razões de política monetária termina sendo ainda mais exacerbada devido ao componente fiscal, dada pela venda de títulos públicos necessários para financiar o déficit. Em outras palavras, podemos dizer que a inversão da curva de juros possa estar ocorrendo devido à dominância fiscal.

*VITORIA SADDI é estrategista da SM Futures. Dirigiu a mesa de derivativos do JP Morgan e foi economista-chefe do Roubini Global Economics, Citibank, Salomon Brothers e Queluz Asset, em Londres, Nova York e São Paulo. Também foi professora na California State University, na University of Southern California e no Insper. É PhD em economia pela University of Southern California.