“Sem proteção, nossa indústria só vai importar, em vez de produzir”, diz Klaus Curt Müller, da Anip
À frente da maior entidade do setor de pneus no País, o executivo afirma que o governo demostra sensibilidade com o tema, mas demora demais para tomar medidas de salvaguarda
Por Hugo Cilo
Enquanto o varejo brasileiro discute os impactos da invasão de produtos chineses via plataformas de e-commerce, o executivo Klaus Curt Müller, presidente da Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos (Anip), calcula os estragos da concorrência “desleal” dos pneus importados chineses no mercado brasileiro. Mesmo com a recente disparada do dólar, que passou de R$ 5,40 nos últimos dias, os produtos vindos de fora continuam chegando com preços muito inferiores aos praticados pelos Made in Brazil, inclusive abaixo do custo da matéria-prima, segundo ele. Por isso, Curt Müller afirma que é urgente que o tema seja tratado pelo governo e pelo Congresso, antes que as consequências sejam irreparáveis para todas as empresas do setor. “Para concorrer, eu precisaria de contrabando de matéria-prima, não pagar funcionário, nem imposto, e ainda ter alguma vantagem do governo, o que não é o caso do Brasil”, afirmou. Confira, a seguir, os principais trechos de sua entrevista à DINHEIRO:
DINHEIRO — Qual a sua análise do atual momento vivenciado pela indústria brasileira e a de pneus?
KLAUS CURT MÜLLER — O atual momento é desafiador. O que acontece é que existe uma questão de importação versus indústria local. Em qualquer lugar do mundo, há diferenças entre as condições de produção de cada país. Então, existem mecanismos de ajuste, como a alíquota de imposto de importação, que faz o balanceamento entre as diferenças de competitividade. Mas isso é válido quando essas diferenças estão em um campo de concorrência leal. No caso de pneus, hoje, quando você pensa em produtos asiáticos no mercado nacional, que representam de 90% a 93% da importação total brasileira, esses itens estão chegando com preços abaixo do custo da nossa indústria. Metade desse total chega abaixo do preço de matéria-prima global. Não dá para concorrer nessas condições tão gritantes.
Como os chineses conseguem vender abaixo do custo da matéria-prima?
Isso é uma estrutura da indústria chinesa, onde o interesse é exportar a qualquer custo. Existem muitos subsídios e instrumentos locais que possibilitam isso, como subsídios regionais e nacionais. A questão de dumping é constante. Os chineses vendem mais no país de exportação do que no mercado interno. Outras condições também viabilizam a produção a um custo baixo ou até abaixo do custo. Para concorrer, eu precisaria de contrabando de matéria-prima, não pagar funcionário, nem imposto, e ainda ter alguma vantagem do governo, o que não é o caso do Brasil.
Como outros mercados estão se protegendo dessa invasão asiática?
Outros países como Estados Unidos, México e União Europeia já montaram suas defesas tributárias e outras barreiras. Isso é um problema global, não apenas da indústria brasileira. Estamos tratando com o governo de modo muito sério as defesas comerciais técnicas. Nosso problema hoje é que estamos numa barreira urgente e transitória. Enquanto os processos de defesa comercial não acontecem, estamos sendo corroídos pela importação.
“A discussão é que qualquer país que produz algo que agrega valor e gera emprego deve verificar se não está perdendo capital. Todo país olha isso’’
A indústria automobilística, em busca de redução de custos, está colocando produtos estrangeiros como pneu original nos seus carros aqui no Brasil?
Não. O único setor que está importando pneu para colocar no seu equipamento original de venda são os implementos rodoviários, como as carretas. As montadoras de automóveis e caminhões mantêm a indústria nacional porque você tem vários detalhes técnicos. Nossos pneus são homologados pela montadora, e existe toda uma parceria de desenvolvimento de produto. O importador pequeno não tem capital para assumir um recall ou possíveis problemas jurídicos. A montadora evita ao máximo correr esse risco. Existe alguns casos pontuais de pneus chineses originais de fábrica, mas só quando esse produtos são testados, aprovados e homolgados pelas matrizes. Além disso, o pneu nacional oferece maior durabilidade e segurança, e é mais econômico a longo prazo.
O Brasil tem a China como principal destino das exportações e é superavitário atualmente. Ao criar barreira aos produtos chineses, existe a possibilidade de uma retaliação?
Isso não existe. Ter um grande parceiro na exportação não obriga a aceitar comércio desleal. Na OMC, todos os mecanismos de defesa comercial ocorrem. A China pode até se defender, mas nunca toma retaliação em processos dentro das regras. Se você colocar no âmbito político, as reações são subjetivas. Mas em processos de comércio desleal, a China reconhece quando há um desequilíbrio e não toma ações de retaliação. A relação de superávit é principalmente na balança de bens primários, que são gêneros de primeira necessidade.
Existe um clima favorável para o debate sobre a taxação da importação de pneus na carona da questão das plataformas de comércio on-line?
A situação é diferente. Na questão das plataformas, o problema é que você tem US$ 50 hoje para uma gama grande de produtos, o que poderia afetar a produção nacional. Há uma concorrência desleal também, mas as soluções são diferentes. Há uma negociação sobre as taxas. A discussão é que qualquer país que produz algo que agrega valor e gera emprego deve verificar se não está perdendo esse capital. Todo país olha, analisa e toma suas medidas para proteger suas indústrias.
Se nada for feito, qual será o futuro da indústria de pneus no Brasil?
Sem proteção, nossa indústria só vai importar, em vez de produzir. Se nada for feito, teremos um avanço ainda maior das importações. Hoje, temos seis grandes empresas e 21 plantas de pneu no Brasil. Essas plantas começarão a se desligar. Já temos mais de 2,5 mil pessoas em lay-off, e o próximo passo é a demissão. Nos tornaremos importadores, o que não queremos, porque temos décadas de investimento e história no Brasil. O caminho será o desmanche da indústria nacional, infelizmente.
Quando isso vai acontecer?
Daqui pouco mais de um ano, se nada for feito. Em 18 meses, o governo e as empresas terão de tomar decisões importantes, de decidir se continua a produzir ou se vai importar. Fabricamos no Brasil mais de mil tipos de pneu. Cada pneu representa uma situação de mercado, volume, retorno e margem. Teremos que escolher quais pneus continuarão a ser produzidos e quais serão importados. Haverá uma transição gradual.
O setor está preparado para só importar?
Sim, temos uma grande estrutura de vendas, capacidade e tecnologia aqui e lá fora. Temos inúmeras plantas lá fora de cada marca. E a gente vira importador, o que não queremos. Temos décadas de investimento e história no Brasil. Mas o caminho é esse porque não vamos conseguir manter todas as fábricas com esse mercado se reduzindo. É uma questão matemática, não é desejo.
Mas as empresas já importam bastante…
Não se compararmos o tamanho do mercado. Nossa importação está em 1% e 2% do total. Historicamente, chegou a 20%. Importamos apenas o que não fabricamos, como pneus com baixa demanda que não justificam uma linha de produção.
E qual será o impacto de substituir a produção nacional por importação?
Vai afetar diretamente 32 mil pessoas. Na cadeia, isso chegaria a 500 mil pessoas, desde o agro até a produção de químicos e aço. A borracha natural, por exemplo, 70% dela vai para pneus. Isso causaria grande desemprego na agricultura e na produção de borracha. A reforma de pneus, que emprega muita gente, também seria afetada. Pneus importados não são ambientalmente corretos e não podem ser reformados.
E o impacto na cadeira de suprimentos?
Isso afetaria várias categorias e elos da cadeia produtiva. Desde 1999, investimos R$ 1,6 bilhão no recolhimento de pneus e gastamos cerca de R$ 100 milhões por ano para tirar esses pneus do ambiente. Importadores não cumprem as metas ambientais e ainda conseguem importar a preços baixos. Isso é um tapa na cara da indústria nacional.
A indústria automobilística também sente esse impacto?
Sim, a expectativa de que a venda de automóveis novos no Brasil poderia chegar a 5 milhões de veículos hoje está na metade disso. Também não tem um efeito desse tipo no mercado. O mercado original, das montadoras, poderia estar melhor. O problema é que existem dois mercados: o original e o de reposição. A reposição geralmente é maior que o original e é onde temos registrado o avanço da importação.
Esse ambiente já está prejudicando os investimentos?
Com certeza. Pode perguntar para qualquer empresa do setor. Qualquer uma que tenha uns US$ 3 bilhões para investir, não coloca aqui. Veja o cenário. Estou com estoque até a tampa, estou com uma invasão de impostados, estou com um market share menor que 50%… Óbvio que não vou investir. Esse é o ponto. No Brasil, às vezes, saímos atrás de investimento com uma mão e, com a outra, acabamos prejudicando, inviabilizando o que já existe.
“Há seis grandes empresas e 21 plantas de pneu no Brasil. Elas começarão a se desligar. Temos 2,5 mil pessoas em lay-off, e o próximo passo é a demissão’’
Mas as empresas fizeram anúncios de investimento recentemente…
A indústria de pneus, assim como a automotiva, precisa investir constantemente porque você compra tecnologia. Melhora o carro, tem que melhorar o pneu. Tenho que estar na frente do carro, o pneu tem que estar pronto. É investimento constante. Às vezes, os investimentos acontecem porque já estavam programados. Novos estão todos em stand-by para verificar para onde vai a nossa situação.
Como está a negociação com o governo em relação a criar barreiras para os importados?
Existe uma sensibilidade e entendimento por parte do governo. A diferença é o timing. Temos várias medidas sendo trabalhadas junto ao governo, mas elas maturam em 8, 10, 12, 18 meses. E você tem uma invasão que já vem de 2023. Então, nossa discussão com o governo é sobre a questão do tempo. Precisamos de uma medida emergencial para balancear essa importação desleal e ter tempo para as medidas efetivas entrarem em ação.
Então, o desalinhamento com o governo é sobre a urgência das medidas?
Exatamente. Hoje, nosso desalinhamento com o governo é sobre o tempo. 18 meses, por exemplo, mais um ano e meio nessa situação, é inviável. Precisamos de uma medida emergencial para chegar às medidas efetivas.