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Depois do Plano Real, o que ainda falta?

Com a moeda introduzida há 30 anos, o País ganhou uma estabilidade monetária que permanece até hoje, mas não resolveu o problema do baixo crescimento

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Marcos Strecker: "Sim, foi a democracia que venceu a inflação, contra populistas e autoritários" (Crédito: Divulgação)

Por Marcos Strecker

Os 30 anos do Plano Real estão sendo devidamente celebrados pelo País. É justo. Para quem acompanha o debate feroz que se trava atualmente sobre as medidas necessárias para manter a inflação no patamar de 3% ao ano, é difícil imaginar que há apenas três décadas esse índice anual era de 2.000%. E vários planos em sequência, alguns francamente oportunistas ou mesmo irresponsáveis, falharam completamente em resolver o problema da hiperinflação, que transformou o País em uma aberração financeira internacional.

Os “pais do Real”, senhores septuagenários e octogenários que atualmente se desdobram em análises e entrevistas para explicar a gênese do plano, estão desfilando os movimentos que levaram à introdução da bem-sucedida moeda na década de 1990. O principal responsável, na verdade, é um nonagenário: Fernando Henrique Cardoso. Foi o suporte político do então ministro da Fazenda, depois presidente, que permitiu aos então jovens economistas e acadêmicos prepararem a mudança monetária que foi recebida com desconfiança, para não dizer hostilidade (“estelionato eleitoral” e “parece pesadelo, mas é Real” eram os motes do PT na época).

E FHC estava na pasta da Fazenda por um desses acidentes biográficos que marcam a história nacional. Foi indicado à revelia para o posto por Itamar Franco, vice-presidente que chegou ao Planalto após o impeachment do titular, Fernando Collor. E o próprio Itamar exigia na época mais uma medida populista para “derrubar” a inflação, ou seja, um novo truque capaz de congelar os preços nas prateleiras dos supermercados e energizar a população. FHC, ao contrário, preparou uma reforma que pudesse no médio prazo desarmar as armadilhas que transformaram o Orçamento em peça de ficção e as contas públicas, em pura desinformação para enganar os agentes econômicos e a população.

O faro político dos políticos reformistas levou a uma novidade na caixa de truques dos gestores da época: o respeito a contratos. E o plano foi acompanhado, como lembrou Pedro Malan nos últimos dias, por medidas como o acerto prévio da dívida externa com os credores internacionais, além das privatizações em setores chave como telecomunicações, siderurgia e energia e o desmonte dos bancos estaduais, que funcionavam na prática como casas da moeda. E tudo com uma oposição selvagem que denunciava mais uma garfada no salário do trabalhador. Ao contrário, a moeda forte ganhou um apoio popular surpreendente. Virou um valor inegociável da sociedade. Até hoje os políticos lenientes com a inflação são punidos.

Obviamente o governo de então cometeu erros, e o plano precisou de várias correções de rota. Um dos piores equívocos foi a paridade com o dólar, uma aposta perdida. A adoção do câmbio flutuante e do “tripé macroeconômico”, que incluía ainda o regime de metas de inflação e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), completou o arcabouço que até hoje está em vigor. Houve o fortalecimento das instituições monetárias e a criação do Copom.

O ponto mais frágil ainda é a LRF, que é desafiada dia sim e outro também pelos governantes e parlamentares em busca de vantagens ou ganhos políticos imediatos. Vários problemas também permanecem e são “ecumênicos”, compartilhados por todos os titulares do Planalto desde então. Houve um enorme aumento da carga tributária desde os anos 1990. Essa ênfase arrecadatória permanece até os dias atuais. A soma dos impostos no último mês de maio, por exemplo, foi o maior resultado para o mês em toda a série histórica, com início em 1995. A carga tributária em relação ao PIB nunca parou de subir. E o presidente Lula ainda acha que mais impostos talvez sejam necessários.

Além disso, o País não conseguiu escapar da armadilha do baixo crescimento (experimentando mais um “voo de galinha” na nova década perdida dos anos Dilma) e permanece com índices vergonhosos de distribuição de renda. Num momento em que a atual Reforma Tributária se perde no varejo do Congresso e no bate-cabeça entre Legislativo e Executivo, é bom lembrar que ainda há muita resistência à adoção de reformas modernizantes. O Plano Real, ao contrário, teve uma âncora política em gestores de centro que resistiram às medidas fáceis e defenderam o debate público. A verdadeira “âncora” do plano foi a democracia, bem disse Pérsio Arida em evento na Fundação FHC. Sim, foi a democracia que venceu a inflação, contra populistas e autoritários.

*Marcos Strecker é jornalista, diretor do Núcleo de Negócios da Editora Três (ISTOÉ DINHEIRO, DINHEIRO RURAL e MOTOR SHOW)