“Lula e o PT precisam compreender que a realidade econômica impõe limites”, diz Rubens Ricupero
Advogado e diplomata elogia o trabalho de Fernando Haddad, questiona as falas sobre política externa de Lula e diz que falta avançar com outras reformas para o Brasil seguir em frente
Por Paula Cristina e Jaqueline Mendes
Um presidente baixinho, carismático, dado a políticas sociais. Um ministro da Fazenda focado no corte de gastos, apontando soluções para aumentar a atração de investimento estrangeiro, controlar a inflação e atender as demandas de seu chefe. Esta poderia ser uma definição precisa da dupla Lula-Haddad, hoje o topo da política econômica brasileira, na visão bem-humorada de Rubens Ricupero, um dos maiores diplomatas brasileiros e ministro da Fazenda no governo Itamar Franco, quando o Plano Real foi lançado. Ele assumiu a pasta no lugar de Fernando Henrique Cardoso, quando este se desincompatibilizou para concorrer à Presidência em 1994. Enquanto o Brasil atravessava um período de hiperinflação, Ricupero participava da consolidação do plano, o projeto da sua vida. Mas não chegou a executá-lo em sua totalidade por um escândalo que o tirou do cargo. Em seu novo livro, Memórias, ele avalia esse turbilhão de acontecimentos e o andamento da moeda que ajudou a criar. Ele falou à DINHEIRO sobre a obra, a economia e a diplomacia atual.
DINHEIRO — Como o senhor vê a atual situação fiscal brasileira?
RUBENS RICUPERO — O que vemos hoje é nosso déficit explodindo. E o governo não tem revelado nenhuma sensibilidade para tentar conter esse desastre. E se o País agravar o déficit, cedo ou tarde, a inflação volta. O ciclo é esse. Se os impostos, a receita do País, não são suficientes para custear os gastos sociais e outros gastos, qual é o caminho? É aumentar a dívida e as emissões monetárias. São os dois processos que conduzem, inevitavelmente, à volta da inflação. E a inflação, por sua vez, vai anular todo o programa de bem-estar social que o PT se propõe a fazer.
Os indicadores têm mostrado diminuição no nível de pobreza dos brasileiros. Isso também seria revertido caso o déficit exploda?
Nenhum brasileiro pode ignorar que, de fato, nós somos um país individual, há muita pobreza. É preciso fazer alguma coisa, mas você tem que fazer na medida que é possível, que as finanças do País permitem, porque, do contrário, você acaba praticando uma ilusão.
Mas o ministro Fernando Haddad tem alertado sobre tais riscos, não?
Sim. Eu acho o Haddad excelente. Alguém que tenta fazer um trabalho magnífico e difícil, mas que nem sempre tem o apoio do presidente Lula. Aliás, o próprio partido dele tem sido muito crítico.
Alguma semelhança com o seu período?
Eu acho que a semelhança é muito grande. Pelo menos até agora, ainda que a minha experiência acabou sendo melhor. Mas eu acho que o problema atual extrapola a capacidade dele, que está nas mãos do presidente Lula e do PT. Acredito que, infelizmente, não há muito que ele possa fazer. A não ser o que ele tem feito, que é um trabalho paciente de demonstrar ao partido e ao presidente qual é a racionalidade. Eu espero que o Haddad também tenha a mesma sorte que eu tive.
“As maiores distorções que existem hoje no Brasil estão no Judiciário e no Legislativo. Quanto mais privilégios, mais difícil governar o País”
Qual sorte?
O Itamar, na minha opinião, era bem melhor [que o Lula], porque, como eu mostro no meu livro, embora ele tivesse aqueles instintos populistas, ele, no final, nunca tentou nos impor uma solução política. E eu não ponho em dúvida a qualidade, a legitimidade da inspiração de Itamar. Em todos os casos, os motivos dele eram bons. Ele queria atender categorias que tinham salário muito baixo, melhorar o salário mínimo, fazer benefício. Só que, embora essas causas em si mesmas fossem meritórias, não existia condição financeira naquele momento. Nós só poderíamos lançar o Plano Real se nós conseguíssemos manter o mínimo de controle do orçamento. E quase todas essas medidas que ele desejava acabariam por agravar muito a possibilidade do déficit. Então eu sempre lembrava a ele que se ele desejava o êxito no Plano Real, não era possível levar avante aquelas ideias, era preciso esperar para o futuro. E eu devo dizer a você que, em todos os casos, ele sempre acolheu os meus argumentos.
Quando o Plano Real foi lançado, o presidente Itamar disse que era só o começo das reformas que o Brasil do século XXI iria precisar. Olhando hoje, o senhor vê que tais mudanças ocorreram?
Evidentemente, era apenas o começo de um esforço de modernização do País. Com o real atingimos a estabilidade monetária. Todas as reformas estruturantes ainda precisavam ser feitas. Algumas saíram do papel, como a Previdência e a Trabalhista. Sobre a Tributária, já em curso, é preciso torcer para que não se cometa o erro de multiplicar as exceções. Porque o grande problema do Brasil é sempre esse. Na minha opinião pessoal, não deveria haver nenhuma exclusão. A outra grande reforma precisa ser a Administrativa, no sentido completo. Não só o Executivo. As maiores distorções que existem no Brasil hoje em dia estão no Judiciário e no Legislativo. Quanto mais privilégios você multiplica, mais difícil vai ficar governar o País. Fernando Haddad, ao lado de Simone Tebet [Planejamento], tem falado sobre acabar com as vinculações do Orçamento. Isso pode ser muito bom.
Tal flexibilização poderia destravar o Orçamento?
O Orçamento tem que ser como é na Inglaterra, como é nos Estados Unidos. Uma peça que se discute a cada ano com as prioridades do momento. Porque quando você coloca numa Constituição, adquire um automatismo, uma rigidez muito grande. É preciso eliminar isso e também levar avante o plano que o Ministério do Planejamento tem tido de examinar todas as políticas públicas brasileiras na base rigorosa de custo-benefício. Nós não temos até hoje no Brasil o mecanismo de avaliação se as políticas públicas se justificam ou não pelos seus resultados. Um mecanismo do século XIX.
E isso explica o mau humor do mercado?
O presidente costuma dizer que é o mercado que resiste, mas não é só o mercado. É o mercado, é a imprensa, são os empresários. E as condições de estabilidade precisam ser promovidas pelo governo federal, ainda que parte expressiva do Orçamento esteja no Congresso ou vinculado. O que o Lula deseja, acima de tudo, e ele tem razão nisso, é que o Brasil cresça. Mas nenhum país cresce sem investimento. Ele mesmo sabe que não está havendo grande investimento. O capital tem que vir dos investidores privados porque tudo o que o governo tem de receita, ele gasta com essas transferências de renda, benefícios de prestação continuada, aumento do salário mínimo, além da inflação e da produtividade. Agora, qual é o investidor que vai ter muita confiança num País em que a grande companhia estatal, que é a Petrobras, em questão de dois ou três anos, teve oito ou nove presidentes?
“Em certos aspectos da política externa, Lula é excessivamente pessoal, com falas improvisadas, e isso acaba prejudicando a diplomacia”
Falando do investimento estrangeiro, como o senhor vê a política externa do atual governo após os anos Bolsonaro?
Na época do Bolsonaro, a situação foi a pior possível, porque, de fato, nós acabamos nos tornando um país pária. Devido às políticas que ele mesmo adotou aqui dentro, tudo em relação à Amazônia e ao meio ambiente, mas também direitos humanos, aspectos de negacionismo e tudo aquilo que conhecemos, o caráter retrógrado do governo. Em compensação, acho que no governo Lula foi muito bom aquele começo de fazer com que o Brasil rapidamente voltasse a ocupar um papel entre os países com uma posição mais ativa. É um governo que tem uma atitude diferente em relação ao meio ambiente, que busca evitar o desmatamento na Amazônia. Ainda assim há aspectos na política do presidente Lula que são excessivos.
Quais?
Eu diria a você essa busca constante de um protagonismo e, sobretudo, ultimamente, uma certa falta de equilíbrio em temas como a guerra da Ucrânia ou o que está acontecendo na faixa de Gaza, e isso acaba por comprometer a posição de mediação, no sentido de favorecer a aproximação de países que estão em conflito e evitar que essa rivalidade entre Estados Unidos e China se transforme em uma espécie de nova guerra fria.
Lula tem deixado que sua imagem própria se sobreponha ao papel diplomático histórico do Brasil?
Eu diria a você que certos aspectos da política do Lula, que é uma política excessivamente pessoal, protagonista, buscando a todo custo aparecer, muitas vezes expressa em declarações improvisadas, sem muita reflexão, de caráter emotivo, acaba retirando o prestígio à diplomacia brasileira.
No quesito do prestígio, o senhor precisou convencer o mundo e o Brasil sobre a confiabilidade do Plano Real. Como foi conquistada tal imagem?
A tendência hoje é achar que tudo foi meio automático, né? Adotamos uma política monetária nova e ela deu certo sozinha. Mas não foi assim. Foi preciso adesão consciente das pessoas.
Mas o senhor conta que precisou acelerar o Plano para ficar dentro do mandato de Itamar. Isso não gerou ruídos?
A equipe tinha esse receio. A maioria dos membros desejava esperar muito tempo, alguns mais de um ano. O que não era viável. O pessoal sabe que o Itamar tinha apenas poucos meses de governo pela frente. Então nós precisamos marcar logo a posição. Eu tive confiança absoluta. Eu só comecei a ter muita preocupação depois do lançamento da moeda, no dia 1º de julho, porque no primeiro mês a inflação já medida na nova moeda real foi muito maior do que a equipe tinha medido que seria.
Como foi isso?
Esperávamos algo inferior a 3%. E acabou sendo mais do que o dobro. Fiquei muito preocupado. Não só eu. Muita gente achava que era mais um plano fracassado. Todos os métodos brasileiros de medição da inflação coletam os preços do dia 15 do mês até o dia 15 do mês seguinte. Então, como lançamos a moeda em 1º de julho, ela já vinha com a carga de 15 dias do mês anterior, quando mais se acelerou o reajuste de preços. Quando isso aconteceu, precisei acelerar o ritmo das entrevistas para explicar o episódio. Até um dia em que eu cheguei a dar 24 entrevistas.
Foi nesse dia que aconteceu o episódio da parabólica?
Eu estava esperando o som para a 25ª. Eu estava muito cansado. Estava com um comportamento estranho. Tanto que naqueles 19 minutos, como eu conto no livro, eu disse muita bobagem. Eu me arrependo até hoje.
O senhor disse: “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura. O que é ruim, esconde”. Como foi o dia seguinte?
Eu pedi desculpas. Telefonei ao presidente e pus o cargo à disposição. No início ele não queria, porque não sabia de nada. Mas à medida que o dia foi avançando, ele viu que havia muita repercussão. E eu acabei saindo. Felizmente, não teve nenhum efeito sobre o futuro do plano. O Real já estava em circulação. No mês seguinte, caiu muito a inflação. Havíamos montado um plano estruturado, que não se abalou com a bobagem que eu falei. E hoje estamos aqui falando sobre os 30 anos daquele período.