Como Lula tenta apaziguar o mercado diante da explosão cambial
Por Paula Cristina
RESUMO
• Presidente fala demais e empurra o dólar para R$ 5,70
• Em tensão com o mercado, tenta reverter a situação anunciando contingenciamento de R$ 25,9 bilhões do Orçamento
É bíblico. Se a palavra vale prata, o silêncio vale ouro. No caso do Brasil de hoje, a palavra do presidente Lula vale doláres. As recentes falas interpretadas pelo mercado como pouco comprometidas com corte de gastos e os ataques ao Banco Central e sua política monetária, formam um ambiente inóspito para valorização do real, e frutífero para o dólar desabrochar – ainda mais com a manutenção dos juros nas terras de Tio Sam.
• Na última semana a moeda norte-americana bateu R$ 5,70, maior patamar da década, com exceção do período pandêmico.
• Só em 2024, o real perdeu 17% de seu valor frente ao dólar, colocando a moeda brasileira como a quinta mais desvalorizada do mundo entre janeiro e junho.
• Os reflexos disso são muitos, inclusive para o governo. Com a alta verificada até aqui, os juros da dívida pública arrolada em dólar podem bater R$ 36 bilhões só em 2024.
• A inflação, com parte dos indicadores indexados ao dólar, pode pressionar a economia brasileira, prolongando o ciclo de estagnação da Selic.
Tudo isso, do ponto de vista macroeconômico, é como veneno para um governo que quer ser lembrado como provedor do bem-estar social. E Lula sabe disso. Por essa razão, ele escalou uma frente de contenção da crise cambial no Palácio do Planalto. Foi chamado de última hora o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Também veio de Lula o pedido para que os secretários e técnicos do Planejamento avaliassem cenários com câmbio variados e seus impactos nas contas públicas, inflação e massa salarial dos brasileiros.
Segundo fontes ligadas ao presidente “tudo foi pedido para ontem”. A sensação de urgência é fruto do tique-taque que já começou a correr para as eleições municipais, a agenda econômica a ser aprovada no Congresso e os planos orçamentários para 2025. Todos estes fatores têm como moeda o capital político de Lula e isso pode ser ameaçado diretamente se houver um descontrole do dólar.
“O corte de gastos ainda está sob análise. O Banco Central está sendo excessivamente cauteloso e o mercado financeiro é quem lucra com isso.”
Lula, em 22 de junho
Publicamente, o discurso também mudou. Se há duas semanas era comum ouvir o presidente falar que o ajuste fiscal e corte de gastos ainda estavam sob análise; que o Banco Central estava sendo excessivamente cauteloso com o cenário doméstico e que o interesse do mercado financeiro era especulativo, na quarta-feira (3) o tom era outro.
Durante o lançamento do Plano Safra, no Planalto, Lula mudou o tom. “A gente não joga dinheiro fora. Responsabilidade fiscal não é uma palavra, é um compromisso deste governo desde 2003 e a gente manterá à risca.”
No começo da noite da mesma quarta-feira, Fernando Haddad anunciou um corte de despesas na ordem dos R$ 26 bilhões, um compromisso público com a redução de gastos e um indicativo de que o arcabouço fiscal criado por ele seria mantido. “Tivemos a oportunidade de nos reunirmos três vezes hoje. A primeira coisa que o presidente determinou é cumprir o arcabouço fiscal. Não se discute isso. São leis que regulam as finanças no Brasil e serão cumpridas. O arcabouço será preservado a todo custo”, afirmou o ministro.
Segundo ele, o plano agora é dar sequência ao pente fino que o governo já vinha fazendo para identificar gastos sociais que poderiam ser cortados. Ele disse ainda que as medidas podem ser antecipadas a depender do relatório de receitas e despesas do governo federal, a ser apresentado no dia 22 deste mês. “Serão R$ 25,9 bilhões que vão ser cortados. Um trabalho com critérios com base em cadastro, nas leis aprovadas.”
Em entrevista recente à DINHEIRO, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, afirmou estar, a pedido de Lula, com atenção redobrada na revisão de gastos. De acordo com ela, a responsabilidade fiscal é um valor inegociável. “Há muito o que avaliar. Não trabalhamos sozinhos, há uma equipe interministerial que avalia, caso a caso, onde pode haver erros ou mal uso do recurso.”
ONDE CORTAR
• Só na Previdência Social, o caminho será longo. Um relatório do Tribunal de Contas da União, de novembro do ano passado, revelou haver entre R$ 10 bilhões e R$ 15 bilhões de gastos com aposentadorias indevidas. Eles listam, além do pagamento de pessoas que já faleceram e não foi atualizado o sistema, a falta de correção do benefício após a reforma previdenciária. Também há um aumento das fraudes de processos iniciados durante a pandemia, quando houve um afrouxamento das regras para liberação do recurso em função da calamidade pública.
• Outra área que pode receber atenção especial do governo são os programas de transferência de renda. Apesar de ser o cartão de visitas de Lula, o Bolsa Família carrega problemas na triagem. Outro relatório do TCU, este datado de outubro de 2023, revelou a possibilidade de haver mais de 4 milhões de famílias recebendo o benefício de modo indevido, com gastos que superam R$ 15 bilhões ao ano. Segundo o relatório, parte deste erro de repasse aconteceu durante a pandemia, quando famílias pediram o auxílio emergencial e converteram para benefício fixo após o período dos pagamentos.
• E se falar sobre o Bolsa Família pode causar algum desconforto ao presidente Lula, outro tema parece trazer ainda mais incômodo, mesmo sendo um caminho bastante efetivo para redução de gastos. Fora da reforma da previdência, sem revisão de benefícios e com um déficit operacional seis vezes maior que o da previdência social, o gasto com aposentadoria dos militares tem sido trazido ao Palácio da Alvorada, mas ainda de modo cauteloso. Este, no entanto, é um daqueles temas que, voltando aos ditos bíblicos, é possível dizer que seria mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que alguém conseguir mexer.