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Reforma Tributária: a hora da verdade

Crédito: Claudio Gatti

Marcos Strecker: "Curiosamente, uma das pressões uniu o presidente Lula e a bancada do agronegócio, que desejavam eliminar a taxação de carnes na cesta básica" (Crédito: Claudio Gatti)

Por Marcos Strecker 

Depois de vários meses de suspense, a Reforma Tributária finalmente entrou em sua reta final na última quarta-feira (10), com a votação da sua regulamentação. Aprovada por meio de emenda constitucional em dezembro passado, a mudança mais radical nos impostos em mais de meio século ainda dependia dessa aprovação. A negociação era decisiva, já que diversos grupos de pressão se dedicaram no primeiro semestre a um embate nos gabinetes do Congresso a fim de diminuir a tributação para determinados setores ou regiões. Além disso, havia o temor de que a antecipação da disputa pela sucessão nas presidências da Câmara e do Senado contaminasse as discussões e atropelasse o processo, o que de fato quase aconteceu quando Arthur Lira anunciou a pulverização da relatoria em diversos líderes.

Mas o ministro Fernando Haddad enviou, afinal, o projeto de regulamentação principal em abril (PLP 68/2024). Aparentemente essa demora se deveu ao pente fino que a pasta e a equipe envolvida na reforma, liderada pelo economista Bernard Appy, fizeram nas centenas de itens que vão normatizar os impostos para evitar inconsistências e, principalmente, garantir que o valor final do IVA, o imposto unificado, não excedesse 26,5%. Uma providência importante já que essa alíquota, espantosa em si, confirma que a população brasileira paga um dos impostos mais altos do planeta. Conceder mais privilégios reproduziria as injustiças tributárias que asfixiam as empresas e travam a economia.

Grande parte das pressões deveria ser contornada nas votações esperadas até a véspera do recesso legislativo, mantendo o espírito da reforma. Assim, ela pode preservar seus princípios: acabar com a guerra fiscal, combater a sonegação, eliminar a penalização de produtos de alto valor agregado e cadeias complexas de produção (como a indústria), trazer transparência e unificar os tributos, suprimindo o labirinto kafkiano de leis. Isso, sem aumentar a carga tributária que é estimada em 34,5%, segundo a OCDE, uma das mais altas da América Latina e desproporcional ao que os países emergentes aplicam.

Ainda que os avanços sejam inegáveis, a briga nos bastidores colocou alguns desses fundamentos em risco. Curiosamente, uma das pressões uniu o presidente Lula e a bancada do agronegócio, que desejavam eliminar a taxação de carnes na cesta básica. O mandatário tentou preservar sua bandeira social enquanto o setor mais identificado com o bolsonarismo desejava turbinar os negócios. Coube ao ministro Fernando Haddad e ao presidente da Câmara, afinal, reverterem de última hora essa manobra, preservando uma das boas ferramentas da reforma: a concessão desse benefício via cashback (devolução) para os mais pobres.

Mesmo que algumas mudanças tenham sido saudáveis no relatório liderado pelo deputado Reginaldo Lopes (PT), como a ampliação da redução de impostos em medicamentos aprovados pela Anvisa, outros dispositivos temerários poderiam ser aprovados no plenário, como a facilitação do comércio de armas, que escapariam do imposto seletivo, criado justamente para coibir produtos nocivos à saúde (e à vida, pode-se acrescentar). As negociações sobre esse “imposto do pecado”, no final, foram algumas das mais difíceis e sujeitas a incongruências. Tudo ainda pode ser reformado, no bom sentido, no Senado. Mas o próprio fato de o novo arcabouço tributário finalmente avançar, após décadas de tentativas frustradas, já é um sinal revigorante para o ambiente altamente polarizado e disfuncional da política brasileira. Modernizar o País, afinal, é possível, como as recentes comemorações dos 30 anos do Plano Real lembraram.