Economia circular não é reciclagem, mas depende dela
Por Beatriz Luz
É inegável que muitas conversas “circulares” ainda giram em torno da valorização de resíduos, como se a cadeia da reciclagem devesse ser capaz, por si só, de resolver todos os problemas socioambientais atrelados ao atual modelo de produção e consumo. Mas, com o Brasil avançando no debate e a economia circular se tornando estratégia nacional, precisamos falar das diferenças e interseções entre as duas agendas.
A economia circular nasce em um contexto global em que a otimização de processos e ganhos de eficiência não são mais suficientes para aumentar a competitividade. A “destinação adequada de resíduos” se tornou muito mais abrangente do que uma negociação bilateral de prestação de serviços e compliance, e a indústria não pode mais pensar suas decisões de forma isolada, pois suas responsabilidades extrapolam as fronteiras da empresa e permanecem, inclusive, após a venda de um produto.
A preocupação com redução de custo é permanente entre os atores da cadeia produtiva, mas, ao repensar processos, indicadores e relações comerciais para que o descarte não exista, a circularidade transforma o olhar de custo em um de investimento. Isso pode garantir benefícios como a redução das emissões globais em 40% até 2050.
O diferencial competitivo passa, então, a estar no início do processo e nas novas formas de atrair e fidelizar os clientes, o que inclui o redesenho de produtos para que sejam mais duráveis e possam ser reparados e compartilhados. Nesse sentido, é evidente que a reciclagem é uma parte fundamental da economia circular, mas, infelizmente, ainda reciclamos muito pouco: por conta do desequilíbrio econômico da cadeia linear, em torno de 4% a 5% do total dos materiais recicláveis são realmente reciclados.
Como parte do processo circular, é preciso investir e reconhecer o papel social e ambiental da reciclagem. Quando reciclamos os materiais, geramos renda ao longo da cadeia, diminuímos a necessidade de extração de recursos naturais e minimizamos resíduos e a poluição, potencializando a capacidade de regeneração do nosso planeta.
A economia circular é um conceito bem mais amplo e lucrativo do que a reciclagem. Embora a reciclagem seja, sem dúvida, uma etapa necessária, quando produtos são concebidos, desde o início, para serem reutilizados, reparados e remanufaturados, é a partir daí que o valor é agregado, a poluição, minimizada e o desperdício, mitigado. Até 80% do impacto de produtos pode ser reduzido na fase de concepção, segundo o Plano de Ação Europeu, o que significa um enorme potencial para mudar as regras do mercado.
A transição exige ações conjuntas do poder público, da iniciativa privada e da sociedade. Sem um olhar integrado de todos os elos, a indústria vai continuar enxergando resíduos, reciclagem e logística reversa como custo ao negócio, sem perceber os benefícios da circularidade para a sociedade e nas discussões de ESG, clima e Netzero. É fundamental uma mudança no mindset para a estruturação de cadeias reversas, para que o “gasto” passe a ser considerado um investimento em uma matéria-prima de baixo carbono.
Para isso, a integração entre os atores da cadeia é obrigatória. Afinal, de que adianta investir em energia solar e não saber onde os painéis fotovoltaicos irão parar quando quebrarem? Por que fortalecer o elo dos catadores se as marcas não estão aplicando valor às matérias-primas secundárias? Para que serve o design circular se focarmos apenas na fase de uso dos produtos e não olharmos para o pós-uso e a mudança de comportamento? Para todas essas perguntas, a resposta está no olhar sistêmico e no desenvolvimento de mercados, incluindo os novos questionamentos que devem ser feitos para definir negócios e financiamento circular.
Caso contrário, vamos continuar vendo resíduos como custo e reciclagem como compromisso legal, sem perceber as oportunidades da economia circular, que pode gerar benefícios na faixa de R$ 7,2 trilhões até 2030. Um novo modelo de governança – em que a reciclagem exerce, sim, um papel especial – é capaz de transformar nossa relação com o planeta e uns com os outros.
Beatriz Luz é fundadora e diretora da Exchange 4 Change Brasil e do Hub de Economia Circular Brasil