Coluna

Nem tudo precisa ser útil

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Luís Guedes: "A capacidade de resiliência e o crescimento pessoal demandam mais atenção do que as franjas do tempo podem nos dar" (Crédito: Divulgação)

Por Luís Guedes

A industrialização do século XIX, potencializada pelo avanço tecnológico sem precedentes na história, deixou marcas tão profundas na nossa cultura que parece que sempre fomos assim, conectados, acelerados, focados. Ocorre, eficiente leitora, ágil leitor, que esse modo utilitarista, onde as coisas precisam o tempo todo “fazer sentido” é uma construção social relativamente recente (e francamente muito chata).

A tecnologia da vez (que também responde por IA), está pronta para revolucionar de novo nosso trabalho e simplificar radicalmente as tarefas rotineiras. Passou da hora de voltarmos nossa atenção para o que importa para nosso desenvolvimento e sobretudo daqueles que dependem de nós. Correr sem parar não está com nada.

Uma das obras mais antigas que conhecemos, anterior até ao Velho Testamento, conta a história do rei da ilha de Ítaca, que volta para casa depois de ser convocado para lutar em uma guerra que não era sua e que durou dez anos. Na Odisseia de Homero, Ulisses passa por perigos, desafios à sua inteligência e sagacidade e encontra na Natureza e na amizade a energia que move sua jornada de volta para casa. Sua vontade de voltar é tanta que Ulisses renuncia à vida eternamente jovem em um paraíso, dengosamente oferecida pela deusa Calipso. Mesmo com essa vontade de ferro e uma missão louvável, Ulisses não se perde, e executa somente a missão. Ele se deixa ficar na Ilha dos Lotófagos, atravessa a perigosa passagem próxima à Ilha das Sereias e decide visitar o gigante Polifemo, que vive segundo outra lei, como tão dramaticamente descobrirá. A beleza transcendental dessa viagem está nas aventuras, que em nada partem da pergunta se “fazem sentido”.

Tristemente todos sabemos o que significa esgotamento no ambiente de trabalho e que a saúde mental é uma das principais questões de mundo contemporâneo, afetando mais de 1 bilhão de pessoas, de acordo com a OMS. Para muito além de empresas ou setores específicos, há fatores subjacentes mais profundos em jogo. Estar sempre ocupado é uma droga, uma flor de lótus, que nos inebria e afasta de uma jornada que pode ser mais interessante, multifacetada, com aventuras e até mesmo caminhos que não levam para lugar algum. Dizem que sucesso é levantar-se depois de cair. Penso que aproveitar a queda e ficar um pouco na grama, vendo o céu, pode ser uma forma interessante de vitória também…

Já passou da hora de voltarmos nossa atenção ao que importa para o nosso desenvolvimento e, sobretudo, daqueles que dependem de nós. Correr sem parar não está com nada”

Vivemos em estado perpétuo de estimulação. Nem dentro do elevador temos paz – entre o térreo e o sétimo andar ficamos sabendo da alta do dólar e que nosso time perdeu. A liderança, que é observada o tempo todo pelo time (não duvide disso) precisa de energia, espaço na agenda e dedicação para olhar criticamente a realidade. Como fazer isso quando só se tem tempo para as coisas que “fazem sentido”?

A narrativa atemporal de Homero nos desafia a cultivar a prática da contemplação e o senso de aventura. Espero da liderança um olhar crítico e de resistência à lógica do busyness (assim mesmo, com y), onde se manter ocupado é sinal de status. A capacidade de resiliência e o crescimento pessoal demandam mais atenção do que as franjas do tempo podem nos dar. Não faça sentido o tempo todo, por favor.

Luís Guedes é professor da FIA Business School