Kamala vai salvar a Bidenomics?
A política econômica do presidente democrata não convenceu a população, mas pode se consagrar com a possível vitória da vice na corrida à Casa Branca
Por Marcos Strecker
Até o último domingo (21), todo o mundo econômico nos EUA estava voltado para decifrar o que seria o segundo mandato de Donald Trump. A reviravolta na corrida presidencial com a retirada de Joe Biden do páreo, assim como o impulso inesperado da consolidação aparentemente irreversível da vice Kamala Harris como candidata democrata, mudou toda a dinâmica dos debates entre agentes, investidores e executivos. Agora todo o esforço é antecipar o que acontecerá com a maior economia do mundo se ela vencer.
Do ponto de vista dela, o maior desafio vai ser defender o legado de Biden enquanto promete um novo ímpeto para corporações e trabalhadores. A Bidenomics, ambiciosa política econômica do atual presidente, impulsionou os negócios e beneficiou todos, mas virou um problema para a atual administração. A inflação foi um pesadelo para Biden, já que a alta dos preços foi sentida largamente pela população e fez a confiança em sua política econômica derreter, apesar de ter levado a sociedade americana ao virtual pleno emprego (mais de 15 milhões de postos criados). Além disso, Biden estendeu os bônus generosos concedidos na pandemia e aliviou os juros para os endividados. Ao aprovar investimentos públicos trilionários para infraestrutura, indústrias e transição energética, ele seguiu um modelo de inspiração neokeynesiana, um antigo sonho dos democratas. Tentou criar a própria versão do New Deal, a política implementada por Franklin Delano Roosevelt nos anos 1930 que venceu a Recessão, esboçou um plano de proteção social e transformou os EUA na potência que dominou o século XX.
Mas a estratégia não deu certo. A população acha que Trump, em seu governo, foi um piloto muito mais eficiente para a economia do que o mandatário que encerra melancolicamente sua passagem pela Casa Branca (uma peça injusta pregada pela história ao veterano democrata). Muitos dos investimentos generosos do presidente enfrentaram enormes desafios de implementação. Em infraestrutura, ainda é um sonho distante a modernização prometida para estradas, ferrovias, portos e telecomunicações. Como o Brasil está cansado de vivenciar, recursos abundantes para obras públicas facilmente se perdem nos escaninhos da burocracia. Já Kamala, se eleita, poderá implementar de fato o programa iniciado por Biden. Analistas apontam que ela vai ampliar a Bidenomics. Na versão 2.0 do plano, ela pode pilotar a fase de entregas, beneficiando-se dos resultados concretos e palpáveis.
A agenda social também poderá ser ampliada num eventual governo dela, dando sequência ao que Barack Obama começou e Joe Biden aprofundou. Seria o mais próximo possível de uma versão norte-americana do Estado de Bem-Estar Social, ainda que em moldes infinitamente distantes da social-democracia europeia. “Medicare for all” (saúde pública para todos), o mote que ela utilizou em sua pré-campanha de 2020, seria um passo e tanto se fosse implementado, além do que Obama conseguiu ao criar o Obamacare com um esforço hercúleo.
Mesmo assim, ela precisará fazer um esforço enorme para convencer os americanos. O discurso de Trump ainda tem forte apelo nas regiões que testemunharam a decadência industrial do país – e muitas estão exatamente nos “estados-pêndulo”, que oscilam entre democratas e republicanos. Além disso, Trump ganha votos ao demonizar e criminalizar os imigrantes e prometer ainda mais protecionismo, com taxas de 10% para todas as importações. Wall Street já abraçou o trumpismo com a expectativa de menos impostos para as empresas, o que aumenta o lucro, e a promessa de desregulação selvagem soa como música aos ouvidos de bilionários libertários como Elon Musk. Antes do “fenômeno Kamala”, o trumpismo já tinha sido normalizado pelo establishment, apesar da tentativa de golpe na última eleição e das dezenas de processos que o ex-presidente enfrenta na Justiça.
Como ex-procuradora-geral da Califórnia, acostumada aos espinhosos processos criminais, Kamala parece representar uma arma eleitoral eficiente contra o republicano. Do ponto de vista econômico, ela lidou com o enorme potencial do seu estado e o dinamismo das big techs do Vale do Silício ao mesmo tempo em que exerceu uma agenda “pró-consumidor”. Resta saber se a “Kamalanomics” também terá um apelo igualmente efetivo para o bolso do eleitor.