Para além da inteligência artificial, a inteligência existencial

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Dante Gallian: "Antes de corrermos atrás da atualização para não perdermos o bonde da história, é preciso que nos questionemos para onde vai esse bonde e para onde nós queremos ir" (Crédito: Divulgação)

Por Dante Gallian

Ando um tanto assustado e, confesso, não menos irritado, diante das análises e previsões proféticas anunciadas por “gurus” do mundo dos negócios em relação à chegada da Inteligência Artificial no âmbito das empresas e do trabalho. Todos nos alertam que se não aprendermos e incorporarmos rapidamente essa nova tecnologia, ficaremos para trás, transformando-nos em dinossauros. É indiscutível que, tal como outras tecnologias no passado, não se poderá conceber nossa dinâmica de trabalho em um futuro próximo sem essa ferramenta. Experiências já têm demonstrado o quão útil e eficaz pode ser a introdução da IA nos processos de caráter mais técnico e burocrático, substituindo, por exemplo, a mão de obra humana em tarefas inócuas e repetitivas ou mesmo naquelas que exigiam dispêndio de tempo e recursos.

Evito aqui deter-me no tema polêmico dos efeitos sociais e econômicos que a substituição do elemento humano pelo tecnológico irá significar, afinal, esta é uma problemática que se apresenta na ordem do dia pelo menos desde a primeira revolução industrial. O nó da questão aqui, me parece, encontra-se em outro nível e diz respeito ao sentido e significado mesmo do trabalho enquanto atividade humana e meio ou caminho para o desenvolvimento da nossa personalidade.

Um dos pontos mais interessantes relacionados à introdução da IA no contexto do trabalho é, talvez, o questionamento do por que trabalhamos. Ora, se a IA pode fazer com muito mais rapidez, perfeição e eficácia aquilo que vínhamos e estamos fazendo para justificar nosso salário, por que então continuar realizando aquilo que, em geral, mais do que nos realizar, nos aborrece e, em muitos casos, inclusive, nos adoece?

Problematizar a IA vai muito além dos efeitos econômicos, sociais e até éticos que estão em jogo. Problematizá-la nos leva a um questionamento existencial, que nos coloca diante do dilema sobre o que nos realiza, o que nos torna humanos

A Inteligência Artificial nos libertará, propalam alguns desses profetas das novas tecnologias. Talvez. Mas nos libertará de quê e para quê? Para que possamos nos dedicar a tarefas mais criativas, prazerosas, coisas que, enfim, a IA não pode ainda fazer. “Ainda” é uma palavra bastante problemática num contexto em que a evolução tecnológica progride de forma quase vertiginosa, não é mesmo? E, como sabemos, a IA não tem mostrado talento apenas para tarefas técnicas e repetitivas. Não temos assistido, numa mescla de espanto e preocupação, como a IA tem se dedicado, com muita competência aliás, a produzir artes visuais e roteiros de filmes? Ora, se isso avança nessa direção, não só nos livraremos das tarefas chatas e repetitivas, mas também, em breve, estaremos “livres” de toda atividade criativa, de tudo aquilo que nos caracteriza como humanos, restando-nos apenas assistir à IA não só trabalhar por nós, como também criar e inventar em nosso lugar. Problematizar a IA vai muito além dos efeitos econômicos, sociais e até éticos que estão em jogo; problematizá-la no contexto atual nos leva a um questionamento existencial, que nos coloca diante do dilema sobre o que nos realiza, sobre o que nos torna humanos. Antes de corrermos atrás da atualização para não perdermos o bonde da história, é preciso que nos questionemos para onde vai esse bonde e para onde nós queremos ir.

Que me desculpem os profetas e gurus da Inteligência Artificial, mas o que mais precisamos neste momento é desenvolver nossa Inteligência Existencial.

Dante Gallian é doutor em História pela USP, coordenador do Laboratório de Leitura da Escola Paulista de Medicina e autor de “Responsabilidade humanística — uma proposta para a agenda ESG” (Poligrafia Editora)