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O legado de Delfim Netto e a economia brasileira

Da política de valorização do café, passando pela estratégia de substituição de importações e milagre econômico, suas contribuições são parte da história recente do Brasil

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Vitoria Saddi: "Sua morte marca o final de um ciclo de economistas que pensaram estratégias de crescimento e desenvolvimento do Brasil" (Crédito: Divulgação)

Por Vitoria Saddi

A perda de Delfim Netto e suas contribuições para o país é o tema de hoje do meu texto. Sua tese de doutorado na USP é um primor e trata da caixa de conversão do café e da política de valorização promovida no Brasil no início do século XX. A ideia do “currency board” era implementar um sistema de câmbio fixo de modo a evitar que os ganhos com a possível alta do preço do café no mercado internacional fossem neutralizados pela eventual valorização do câmbio no Brasil.

Foi fora da academia que sua fama correu mundo. Foi o “todo poderoso” do governo militar, tendo ocupado as pastas do Planejamento, Fazenda e Agricultura, exercendo as funções de embaixador na França, deputado federal e professor emérito da FEA/USP, entre outros cargos. Ocupou a pasta da Fazenda/Planejamento duas vezes durante a ditadura militar. A primeira vez foi de 1967 a 1973, um período de forte crescimento que culminou com o “Milagre Econômico Brasileiro”, sendo as principais características descritas a seguir.

• Um dos pontos do milagre foi o fato de o País ter experimentado taxas de crescimento do PIB em torno de 11% ao ano, uma das mais altas do mundo na época.
• Um segundo aspecto foi o forte desenvolvimento industrial, com expansão significativa nos setores de manufatura e infraestrutura.
• O terceiro foi o significativo investimento estrangeiro e estatal em grandes projetos de infraestrutura. Empresas estatais desempenharam um papel crucial em setores-chave como petróleo, energia elétrica e telecomunicações.
O quarto foi o fato de este “milagre” ter sido atingido com uma relativa estabilidade de preços, com a inflação relativamente controlada, ajudando a manter a estabilidade econômica e a atrair investimentos internacionais.
O quinto ponto foi o aumento da concentração de renda. De fato, o crescimento beneficiou principalmente as classes média e alta urbanas, enquanto muitas áreas rurais e a população mais pobre ficaram marginalizadas.
O sexto é o fato de o milagre ter ocorrido sob um regime militar autoritário que reprimiu as liberdades civis e políticas.
O sétimo e último ponto é que as condições macro que permitiram a presença do “milagre” foram pavimentadas no PAEG, um plano de estabilização do governo Castelo Branco.

Em 1974, tivemos o 1º choque do petróleo, com o aumento do preço da commodity no mercado internacional. Delfim se tornou embaixador do Brasil na França e Mario Henrique Simonsen assumiu a liderança da economia, optando por continuar a política de crescimento ao invés de se ajustar à nova realidade de alta dos preços do petróleo. A ideia era promover uma política anticíclica, manter uma taxa de crescimento positiva, expandir as exportações e aumentar a autossuficiência em setores como o da energia.

Delfim volta a assumir em 1979 a pasta da Fazenda, no início do governo Figueiredo, quando entrou para substituir Mario Henrique Simonsen. O Brasil enfrentava desafios sérios, sobretudo considerando que as fontes de financiamento da década de 70 haviam secado, basicamente devido ao segundo choque do petróleo, maior inflação mundial e alta das taxas de juros nos EUA. Além disso, o País lidava com um déficit significativo na balança comercial devido às políticas do II PND, exigindo ações rigorosas como a desvalorização do cruzeiro para reduzir importações, políticas fiscais e monetárias contracionistas e a desaceleração do crescimento econômico. Essas medidas visavam equilibrar o balanço de pagamentos, mas tiveram pouco efeito, pois a recessão global também prejudicou o crescimento das exportações. Isso manteve os déficits comerciais elevados, forçando o Brasil a adotar as políticas requeridas pelo FMI.

A meu ver sua morte marca o final de um ciclo de economistas que pensaram estratégias de crescimento e desenvolvimento do Brasil. Roberto Campos, Mario Henrique Simonsen, Afonso Celso Pastore – em outro campo ideológico, Maria da Conceição Tavares e Celso Furtado – e, agora, Delfim. Eles iniciaram o pensamento econômico brasileiro. Durante a década de 80 a imprensa e os próprios economistas gostavam de associar o fracasso da estratégia de substituição de importações ao nome de Delfim. O Brasil é um País de pessoas. Delfim criou instituições e suas contribuições vão muito além de tais experiências. Seu legado e suas contribuições são eternas e ultrapassam em muito as políticas econômicas criadas nos dois períodos que esteve à frente da economia.

*VITORIA SADDI é estrategista da SM Futures. Dirigiu a mesa de derivativos do JP Morgan e foi economista-chefe do Roubini Global Economics, Citibank, Salomon Brothers e Queluz Asset, em Londres, Nova York e São Paulo. Também foi professora na California State University, na University of Southern California e no Insper. É PhD em economia pela University of Southern California.