Economia

A herança política e econômica de Delfim Netto, conselheiro da ditadura e de Lula

Delfim Netto, o mais longevo e influente economista da história recente da República, deixa um legado de diálogo, diplomacia e resiliência, tornando-se nas últimas décadas uma das vozes mais respeitadas em governos de direita e de esquerda – e até na ditadura

Crédito: Claudio Gatti

Delfim Netto: aconselhamento em obras sociais e presença que gerava calmaria no mercado financeiro (Crédito: Claudio Gatti)

Antônio Delfim Netto era um apaixonado por relógios. Tinha uma coleção com mais de 40. Não só pela elegância e sofisticação do acessório, mas pela mágica capacidade que engrenagens e ponteiros têm de determinar o tempo. E Delfim era especialista em contagem do tempo. Como exímio praticante do sedentarismo ­— com horas de sobra para reflexões, leitura de livros densos e elaboração de pensamentos complexos –, dizia ser completamente avesso a atividades físicas. A explicação era matemática. “O coração é um músculo programado para bater 1.432.729.266 vezes [para facilitar, pouco mais de 1,4 trilhão de batidas]. Quando chega nisso, o músculo para”, alegou Delfim, em sua última entrevista à DINHEIRO, em 2021. “Então, acelerar o coração só encurta nosso tempo de vida.”

A controversa bandeira antiaeróbica de Delfim, no entanto, foi a menor de suas polêmicas.

O mais longevo e influente economista da República transitou com desenvoltura ao longo de sua vida quase centenária em governos de direita e de esquerda.

Entre 1967 e 1974, protagonizou como ministro da Fazenda o chamado “Milagre Econômico” durante a Ditadura Militar, quando coparticipou da elaboração do Ato Institucional Nº 5, o AI-5, a mais violenta e repressiva iniciativa do então governo do marechal Costa e Silva.
De 1975 a 1978, fora dos holofotes, foi embaixador do Brasil na França.
Após sua volta ao País, ocupou, de 1979 a 1985, a cadeira de ministro da Agricultura.
Em seguida, sob o governo de João Batista Figueiredo, liderou a pasta do Planejamento. Anos depois, questionado sobre as atrocidades dos militares naquele período, Delfim garantiu que não tinha conhecimento do lado nefasto da ofensiva do regime.

“Uma vez perguntei ao presidente Médici se havia tortura. Ele disse que não. Acreditei. Confiei porque era um sujeito correto, decente”, disse Delfim ao jornal O Globo, em 2014.

Verdade ou não, em certa medida o tempo inocentou e redimiu Delfim. Nos primeiros anos do governo Lula 1, entre 2003 e 2006, tornou-se um respeitado conselheiro ­— algo quase exótico para um governo de esquerda, vítima dos anos de ditadura. Mas deu certo. Participou dos conselhos de criação de programas como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e Luz para Todos.

“Passei 30 anos da minha vida xingando o Delfim Netto. Foram 30 anos. E quando eu virei presidente da República, em momentos muito difíceis, o principal economista de fora do meu partido que veio a defender o governo foi o Delfim”, disse Lula, durante recente evento promovido pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Lula e Delfim Netto passaram três décadas trocando críticas públicas até o economista se tornar um respeitado conselheiro no primeiro governo do petista (Crédito:Divulgação )

A afinidade de Delfim com a esquerda, segundo ele mesmo, se deu quando suas ideias econômicas tinham “essência social”. Durante sua atuação na Associação Comercial de São Paulo, ajudou a elaborar e implementar dezenas de políticas de incentivo a pequenas e médias empresas, as quais Delfim considerava o motor do desenvolvimento econômico e social do País.

“É inegável seu valoroso legado, que perdurará por anos”, disse Roberto Mateus Ordine, presidente da Associação Comercial de São Paulo (ACSP).

Delfim Netto é visto por muitos como um dos principais responsáveis pela modernização da economia brasileira durante o regime militar.

Ele é reconhecido por seu pragmatismo econômico, mas também criticado por suas políticas que priorizaram o crescimento econômico à custa do bem- estar social e da democracia. Mesmo após se afastar da vida política ativa, Delfim se manteve influente como consultor e comentarista econômico, sendo uma voz respeitada, ainda que polêmica, no debate público sobre a economia.

Delfim não enxergava contradição em nada, segundo o amigo Luiz Gonzaga Belluzzo, economista com quem Delfim se reunia quase semanalmente para aconselhar o então ministro Guido Mantega (a pedido de Lula). “Ter sido da direita e ajudar governo de esquerda era natural para o Delfim. Não uma contradição ou incoerência. Ele tinha dificuldade em entender as críticas que recebia sobre isso”, relembrou Belluzzo à DINHEIRO. “Tanto nos governos militares quanto no governo Lula, Delfim ajudou a gerar calmaria na economia em períodos de agitação.”

Delfim se destacou não apenas no cenário político e econômico, mas também na área acadêmica.
Nos anos 1950 e 1960, dividiu seu tempo como professor de Economia na USP, onde também obteve seu doutorado.
Seu trabalho acadêmico, focado principalmente em temas de economia agrária e crescimento econômico, chamou a atenção de líderes políticos e empresários, o que pavimentou seu caminho para cargos de maior influência.
Um de seus livros, O Mercado e a Urna, de 2002, se tornou um manual obrigatório nos principais cursos de economia no País.

“Delfim Netto deixou um importante legado, seja como acadêmico, professor, ex-ministro ou ex-deputado, influenciando de forma relevante a história do Brasil e o debate público”, disse Ilan Goldfajn, presidente do BID e ex-presidente do BC.

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Delfim, como ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, liderou a economia brasileira no período de crescimento exuberante do PIB (Crédito:Divulgação )

O fato é que, seja nos governos em que participou ou nos bancos acadêmicos, Delfim se tornou um dos mais influentes economistas do Brasil.

“Delfim Netto foi, a meu ver, o mais influente de todos. Com permanente bom humor, ajudou nas soluções das mais complexas questões econômicas e desafios do Brasil”, afirmou Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda.

Para Otaviano Canuto, diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI), Delfim Netto exerceu, com “brilhante intelecto”, forte influência sobre a formulação de políticas econômicas no País. “Como congressista, teve um desempenho melhor do que aquele como formulador e executor de políticas no setor público no tempo que esteve a cargo”, disse Canuto à DINHEIRO.

Na segunda-feira (12), aos 96 anos, depois de dez dias internado no Hospital Albert Einstein por complicações de saúde, aquele implacável senhor da razão, o tempo, parou para Delfim.