Economia

Desigualdade persiste e dependência do Bolsa Família sobe

Fatia dos brasileiros que possuem o benefício como principal fonte de renda passou de 2,6% em 2021 para 3,7% em 2023 e pode chegar a 7,3% em 2030 pela falta de capacitação de mão de obra

Crédito: Fabio Teixeira

Família carente na Baía de Guanabara, no Rio, em 2021, durante a pandemia (Crédito: Fabio Teixeira)

Por Paula Cristina

Brasil é um país desigual. Essa afirmação, que não surpreende absolutamente ninguém, é a única corrente que se mostrou estável e constante em todos os períodos da história brasileira desde a chegada dos portugueses às terras tupiniquins — e muito possivelmente por isso perpetuaram-se os desequilíbrios econômicos. Com isso posto, presenciamos como se comporta uma nação desequilibrada financeiramente e seus reflexos na macro -economia. Para alguns, saltam aos olhos os efeitos da baixa escolaridade, privação de direitos básicos, construção sociológica violenta. Para outros, implica em uma sociedade mais dependente do Estado, um mercado consumidor contraído e uma força de trabalho deficitária. E todas as colocações estão corretas.

A solução, aceita e reproduzida por diferentes espectros ideológicos, é forçar a transferência de renda por meio do governo, um processo que, por aqui, ganhou o nome de Bolsa Família e é uma dos projetos mais bem- sucedidos da história do mundo neste quesito. Mas, sob a ótica da riqueza, quanto o País evoluiu nestes mais de 20 anos de programa?

Lula e o ministro Welligton Dias durante anúncio de antecipação do Bolsa Família para os moradores do Rio Grande do Sul (Crédito:Ricardo Stuckert/PR)

A resposta é tão complexa quanto a pergunta. No recorte dos rendimentos familiares per capita, a transferência de renda direta era a principal fonte de recursos de 0,3% das famílias em 2003, passou para 2,6% em 2021 e atingiu 3,7% em 2023, ainda que o mercado de trabalho tenha melhorado nos últimos anos. A estimativa do Ipea, com números compilados pelo Centro de Estudos para o Desenvolvimento do Nordeste do IBRE/FGV, compilados com exclusividade pela DINHEIRO, é que no atual ritmo de concessão do benefício, a fatia possa chegar a 7,3% em 2030.

Mas, antes que a discussão sobre preguiça ou falta de vontade de trabalhar possa ganhar corpo, um alerta: não estamos tratando de comodismo, ainda que a explicação encoste na famosa frase sobre “dar o peixe ou ensinar a pescar”. O estudo da FGV evidenciou as dificuldades de inserção laboral desse grupo, “seja pela capacidade do mercado absorver estas pessoas (com menor capital humano), seja pela ausência de incentivos para a participação no mercado de trabalho (principalmente, desalento)”, explicou Vitor Hugo Miro, um dos autores do levantamento.

Com base nos dados do PNAD, o Ipea também fez suas prospecções. Com o refinamento constante do mercado de trabalho em direção a posições ligadas à tecnologia, há um abismo pela frente. É preciso capacitar mais, mais rápido e com muito mais qualidade do que o atual. “Temos um dilema grande, aprofundado pelos anos do ensino prejudicado pela pandemia, que se soma a uma estrutura acadêmica deficitária. Não será fácil”, disse Viviane Cordeiro, que foi pesquisadora do Ipea e ex-secretária de desenvolvimento econômico do Ministério da Fazenda do governo Michel Temer.

Reconhecendo o valor e importância do Bolsa Família para redução da pobreza extrema e seus efeitos claros na melhoria da qualidade de vida dos brasileiros, ela afirma que, enquanto essa solução paliativa for a única no front, a dependência aumentará. “O Brasil ampara o mais pobre e subsidia o mais rico, mas age muito pouco no meio desta pirâmide, e nela estão respostas importantes para o desenvolvimento”, disse. Isso, segundo ela, passa pelo Bolsa Família. Ele é um elemento essencial para a saída da extrema pobreza, mas, sozinho, é incapaz de produzir uma mobilidade social. “Sem capacitação para o mercado de trabalho formal, muitos partem para a informalidade ou autonomia, mas isso não tem bastado”, afirmou.

Transferência de renda tirou 18 milhões de pessoas da extrema pobreza no Brasil (Crédito:Divulgação)

Prova disso apareceu em um estudo do IBGE divulgado em agosto que revelou que 2,1 milhões de microempreendedores individuais (MEIs) no País são beneficiários do Bolsa Família.
Isso representa 14,1% do total (14,6 milhões) de empreendedores.
Os números se referem ao ano de 2022, dado mais recente disponível, época em que o programa era chamado de Auxílio Brasil durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
O estudo revela que muitos beneficiários do programa buscam empreender para compor a renda da família. Quem tem renda familiar de até R$ 218 por pessoa tem direito ao benefício e pode, ao mesmo tempo, atuar como MEI.
Quando ampliado para outros benefícios sociais, cerca de 4,1 milhões de MEIs estavam inscritos no CadÚnico em 2022 — ou seja, 28,4% do total.

Segundo Vitor Hugo Miro, o levantamento da FGV evidenciou que a participação dos rendimentos do trabalho na renda domiciliar per capita diminuiu entre 2021 e 2023. “Na população total essa redução foi mais discreta, mas entre os extremamente pobres, a queda foi significativa”, disse. Para a população em extrema pobreza, conta ele, a reconfiguração dos programas sociais, em especial o Programa Bolsa Família, teve um reflexo muito forte, se traduzindo em um aumento substancial na participação das transferências na composição da renda domiciliar. “Isso representa um aspecto positivo, uma vez que provê maior renda para famílias vulneráveis, mas reflete a dificuldade de inserção econômica dos mais vulneráveis e a dependência de benefícios desta natureza.”

Mais de 2 milhões de microempreendedores individuais recebiam o benefício do Bolsa Família em 2022 , o que representa 14,1% do total de MEIs abertas no Brasil

A região Nordeste, a mais pobre do País, apresenta as maiores disparidades. A menor participação da renda do trabalho e a maior dependência de programas sociais nesta região reforçam a necessidade de políticas públicas específicas e mais efetivas para promover a inclusão econômica e reduzir a pobreza. “Os indicadores de participação e ocupação, bem como as taxas de informalidade, denunciam que o mercado de trabalho do Nordeste necessita de maior dinamismo.” Ainda que nos últimos dez anos o Bolsa Família tenha desempenhado um papel essencial para redução da extrema pobreza, o próprio ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, reconhece que é apenas mais uma ferramenta dentro de uma engrenagem maior.

À DINHEIRO, ele afirmou que tem trabalhado em duas frentes, uma na ampliação de ações de capacitação, modernização e ampliação do acesso ao mercado de trabalho. “Temos que ressaltar que, entre janeiro e julho, 77% das vagas de empregos ocupadas eram de trabalhadores inscritos no cadastro único”, disse. De acordo com ele, os programas que visam melhorar a qualificação da mão de obra são feitos em parcerias com outros ministérios e dentro dos estados. “São inúmeras iniciativas, muitas delas feitas com a iniciativa privada, é um processo que já está em curso”, disse.

Sobre o crescente número de beneficiários, ainda que o desemprego tenha caído e a economia tenha crescido, Dias explica que houve um pente fino no programa. Em 2023, o governo retirou 3,7 milhões de beneficiários do Bolsa Família, reduzindo os gastos em R$ 34 bilhões, mas 4,7 milhões de novas famílias foram incluídas, totalizando 20,7 milhões de famílias atendidas. O ministro afirmou que, sem a reformulação do Cadastro Único e o pente-fino, o número de beneficiários poderia ter ultrapassado 26 milhões. “Em 2025 os mecanismos para evitar fraude, duplicidade de pagamentos ou recebimentos indevidos serão ainda mais fortes. A ideia não é retirar o recurso, mas redirecionar para outras frentes, como a capacitação”, afirmou.

PROBLEMA CRÔNICO

Resolver tal questão não é tarefa fácil, e as discussões sobre caminhos é tema constante da economia mundial. Inclusive pelo ganhador do prêmio Nobel, em 1971, o economista russo e naturalizado norte-americano Simon Kuznets. Ele, que é o autor do termo Produto Interno Bruto como referencial para medir as riquezas de um país, escreveu em seu livro Economic Growth of Nations: Total Output and Production Structure que o crescimento econômico das nações é sustentado pelo avanço do produto per capita ou por trabalhador e precisa ser uma das maiores preocupações dos líderes das nações capitalistas ou não.

De acordo com Kuznets, na obra Crescimento Econômico Moderno: Ritmo, Estrutura e Difusão, de 1981, “é o povo que gera o crescimento econômico e consome os seus frutos; e o aumento de população é uma característica e uma condição peculiar do crescimento moderno”. Na mesma publicação, ele defende que garantir a subsistência da população é apenas o primeiro passo e, na sequência, é necessário estimular a produção de riquezas destes elos da sociedade, se tornando um “aspecto-chave de uma economia em crescimento”.

Mas antes de desenvolver toda linha argumentativa, Kuznets fez outra contribuição para a economia moderna, é um assunto que o Brasil conhece bem. Ele criou a Curva de Kuznets, que representa a hipótese que, à medida que a economia se desenvolve, as forças de mercado primeiro aumentam e depois diminuem a desigualdade. O problema disto é que, quando não é estruturado com pilares sólidos de educação e preparação para o mercado de trabalho, o crescimento econômico tem duração de, no máximo, 25 anos, e é seguido por uma recessão. São quatro fases no ciclo: a prosperidade, a recessão, a depressão e a recuperação. Uma história que, assim como a desigualdade, se repete sistematicamente desde que o Brasil é Brasil.