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“O governo vai prejudicar os mais pobres com o cashback da Reforma Tributária”, diz Gesner Oliveira

O economista defende que produtos essenciais como carnes e alimentos básicos deveriam ter isenção de impostos para garantir redução da pobreza e estimular a concorrência

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Economista Gesner Oliveira: "No caso de compras pulverizadas, como em supermercados e açougues, há uma margem maior para fraudes" (Crédito: Divulgação)

Por Hugo Cilo

Em vez de ajudar, o cashback para os mais pobres vai prejudicar os brasileiros de baixa renda. É o que afirma o economista Gesner Oliveira, sócio da GO Associados e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), onde coordena o Centro de Estudos de Infraestrutura e Soluções Ambientais. PhD em Economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), ele elaborou um estudo que mostra que cerca de 90 milhões de brasileiros considerados pobres não terão direito à devolução do imposto sobre a carne e acabarão pagando ainda mais pelo consumo.

“O cashback não é suficiente para proteger um grande número de pessoas que deveriam ter acesso a esse item essencial”, afirmou à DINHEIRO. A crítica de Oliveira tem ecoado nos bastidores do governo porque seu currículo sustenta a análise. O executivo foi presidente da Sabesp entre 2007 e 2011, presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) de 1996 a 2000, secretário-adjunto de Política Econômica (1993-1994) e secretário de acompanhamento econômico (1995) do Ministério da Fazenda. Em março de 2021, publicou Nem Negacionismo, Nem Apocalipse – Economia do Meio Ambiente: uma perspectiva brasileira, com Artur Ferreira, e venceu o Prêmio Jabuti na categoria Economia Criativa. Confira, a seguir, sua entrevista:

DINHEIRO — Gostaria que você detalhasse um pouco o estudo que vocês fizeram, começando pela questão do cashback da cesta básica. Como você chegou à conclusão de que esse sistema deixaria 70 milhões de brasileiros de fora?
GESNER OLIVEIRA — O cashback está baseado no Cadastro Único, o CadÚnico, que beneficia pessoas com renda de até meio salário mínimo per capita por domicílio. O problema é que há muitas famílias pobres fora desse critério. Usamos as categorias do Ipea e calculamos quantas pessoas com renda média baixa, entre meio salário mínimo e R$ 1.887 per capita por mês, não estariam incluídas no cashback. Isso representa mais de 90 milhões de pessoas.

Qual seria o impacto na prática?
Com a retirada da alíquota zero da carne, calculamos um aumento médio de preço de 8,5%. Esse aumento impacta seis vezes mais os mais pobres do que os ricos, porque a carne tem um peso maior no orçamento dessas famílias. O cashback não é suficiente para proteger um grande número de pessoas que deveriam ter acesso a esse item essencial.

Então esse detalhe vai prejudicar os que ganham menos?
Sim. O impacto da inflação é sempre proporcionalmente maior para os mais pobres. Com a Reforma Tributária, o aumento do preço da carne será maior do que para as pessoas mais ricas, em média. Então, o que chama atenção é que o cashback não é suficiente para proteger um contingente enorme de pessoas que deveriam ter acesso a um item essencial como a carne. O governo vai acabar prejudicando os mais pobres com o cashback da Reforma Tributária.

O governo está ciente disso? Já houve alguma comunicação oficial?
Transmitimos esses resultados em um debate na CNN, mas não houve uma reunião oficial. Estamos à disposição para compartilhar todos os números e os efeitos da alíquota zero da carne no Imposto sobre Valor Agregado. Enquanto o governo divulgou um impacto de 0,56%, nossos cálculos mostram 0,28%. A carne não pode ser considerada a vilã de uma alíquota alta. Como tenho dito, para os ricos, isso no orçamento é peanuts, para os pobres é fundamental.

“No caso de compras, há bilhões de transações, o que dá margem a todo tipo de fraude. A maioria das pessoas é honesta, mas existe 1% ou 2% de 90 milhões que não são. Haverá um custo alto de fiscalizar”

Você vê espaço na situação fiscal atual para ampliar a base do cashback?
Acho mais difícil e pouco recomendável do ponto de vista técnico. O cashback é útil em situações específicas, como a conta de luz, que é mais fácil de monitorar. No caso de compras pulverizadas, como em supermercados e açougues, há uma margem maior para fraudes. Manter a alíquota zero poderia ser mais eficaz, com um mercado maior e mais concorrência.

Se o cashback não é adequado, qual seria a solução?
A solução mais adequada seria a alíquota zero para uma cesta básica abrangente, como já está na emenda constitucional. Isso inclui manter a alíquota zero para carnes. Podemos considerar alíquotas maiores para itens não essenciais, mas é crucial garantir a neutralidade tributária sem aumentar o preço de itens essenciais como a carne. Isso significa calibrar as desonerações para manter a arrecadação.

Como o governo vai fiscalizar quem deve ou não ter direito a cashback?
É complicado. No caso de compras, vendas, supermercados, açougues e tudo mais, há bilhões de transações, o que dá margem a todo tipo de fraude. A maioria das pessoas é honesta, mas existe 1% ou 2% de 90 milhões que infelizmente não são. Quero dizer que haverá um custo alto de fiscalizar, monitorar esse sistema para minimizar a fraude, provavelmente sem sucesso. Não me parece que vale a pena fazer isso.

O sistema de cashback, então, seria ineficiente nesse contexto?
Sim, principalmente em transações pulverizadas como compras de carne. É difícil monitorar e evitar fraudes em um sistema tão amplo. A alíquota zero seria uma solução mais simples e eficaz, reduzindo o impacto nos mais pobres e evitando a concentração de mercado.

O Senado pode reverter isso?
São esses os resultados que realmente nos levam a crer que o Senado deveria manter a alíquota de 7% para a carne. No final, não estar com 0% significa aumentar o preço em 8,5%, na média. Aumentar o preço significa um impacto seis vezes maior para os mais pobres.

A queda recente nos preços dos alimentos, que gerou deflação no mês passado, tende a esfriar o debate sobre a cesta básica?
Acho que não. A alimentação é um item essencial do orçamento das famílias. Os preços podem ter caído recentemente devido a fatores conjunturais, mas estamos discutindo uma Reforma Tributária de médio e longo prazo. É importante olhar com cuidado para itens essenciais como a alimentação.

Como as recentes mudanças climáticas, como a seca, os incêndios e as inundações, podem impactar os preços dos alimentos?
As mudanças climáticas são a nova realidade e o Brasil, como grande produtor de alimentos, vai sentir mais os impactos. Isso tende a colocar a questão dos alimentos em uma nova perspectiva do ponto de vista tributário, já que a tendência é que a gente tenha esses ciclos extremos cada vez mais frequentes, como foi o alagamento no Rio Grande do Sul, incêndios aqui em São Paulo, fogo na Amazônia e no Pantanal. Enfim, não há dúvidas de que todos esses fatores climáticos influenciando o preço dos alimentos.

Isso vai afetar a inflação dos alimentos?
Certamente há mais volatilidade. Para 2024, prevê-se uma queda na produção agropecuária devido a eventos climáticos. Isso terá um impacto nos preços. O mercado de commodities agrícolas é naturalmente volátil, sujeito a choques de oferta. A Reforma Tributária deve ser pensada em termos de médio e longo prazo, garantindo que itens essenciais sejam menos taxados.

O aumento do preço da carne pode contrair o mercado e favorecer a concentração entre grandes frigoríficos?
Sim. Quando se aumenta a carga tributária, as camadas mais pobres consomem menos carne, o que contrai o mercado. Pequenos produtores perdem espaço e acabam saindo do mercado, o que favorece a concentração entre grandes players. A consolidação é um processo normal, mas que precisa ser acompanhado. Isso porque pequenos produtores não têm acesso aos benefícios dos créditos obtidos pelos exportadores, por exemplo.

Mas a concentração de mercado é algo que se pode ou que se deve barrar?
Não é algo inevitável que aconteça em todo lugar e de uma maneira absoluta. No caso brasileiro, os produtores menores têm menos acesso ao mercado externo, então essa modificação da Reforma Tributária é algo bom, só que uma grande vantagem da Reforma Tributária são os créditos obtidos pelos exportadores. Se você não tem acesso ao mercado externo, não tem esse benefício. Então, quando se aumenta a carga tributária, as camadas mais pobres deixam de comer carne ou passam a comer muito menos, e o mercado contrai. Esses pequenos produtores perdem espaço, acabam saindo do mercado. Eles, por outro lado, também não têm a vantagem dos créditos, como os da exportação, o que acaba deixando o mercado para um menor número de players. Estimular a concorrência entre os pequenos é bom para o mercado.

Como você avalia a relação entre as condições econômicas da população e o consumo de proteína animal?
O consumo de carne está diretamente ligado à capacidade de consumo das famílias, ao aumento do poder de compra. Quando se taxa mais itens como a carne, se reduz esse consumo, o que prejudica a alimentação dessas famílias menos favorecidas. O imposto sobre consumo deveria ser mais baixo para itens essenciais, principalmente os alimentos, e os ricos deveriam ser taxados de outras formas, como no imposto de renda ou sobre patrimônio. Cobrar imposto alto sobre itens essenciais prejudica a nutrição. Itens essenciais deveriam ser estimulados, não taxados.

“O imposto sobre consumo deveria ser mais baixo para itens essenciais, e os ricos deveriam ser taxados de outras formas, como no imposto de renda ou sobre patrimônio. Cobrar imposto alto sobre itens essenciais prejudica a nutrição”

O Brasil ainda tributa mais o consumo do que a renda? Isso, em geral, aumenta a desigualdade?
Com certeza. Sistemas tributários mais equilibrados taxam mais a renda e menos o consumo. O Brasil tem mais impostos indiretos, o que é regressivo, pois é mais difícil dar um tratamento desigual para desiguais. O imposto direto permite mais progressividade na tributação.

Em comparação com outros países, o Brasil ficará menos defasado na questão da tributária depois da reforma?
Sim. O Brasil precisa ter imposto sobre a renda e menos impostos indiretos. Proporcionalmente, o País tem mais impostos indiretos e menos impostos diretos. No imposto do consumo é mais difícil de se dar um tratamento desigual para desiguais. Quando você vai fazer, até certo ponto é possível. Eu dei o exemplo, como é o caso da energia elétrica e da água.