Economia

Lula na ONU diz que Brasil é estrela da energia verde, mas mal cita queimadas

Na abertura da Assembleia Geral da ONU, Lula ressalta a capacidade de produção de energia verde do País para atrair investimentos

Crédito: Michael M. Santiago

Por Beto Silva

De forma enérgica, Lula tratou de transição energética e energia limpa. Não se trata de um trava-língua. O presidente da República apresentou o Brasil ao mundo, de diversidade linguística, como “celeiro de oportunidades” no setor de energia, na abertura da 79ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, na terça-feira (24). “Somos hoje um dos países com a matriz energética mais limpa. 90% da nossa eletricidade provêm de fontes renováveis como a biomassa, a hidrelétrica, a solar e a eólica”, disse o brasileiro, em bom português, lendo um discurso de 2.114 palavras preparado minuciosamente por semanas pelo Itamaraty e pelo Palácio do Planalto. Se não deu nó na língua, a intenção foi mexer com a cabeça dos representantes dos 193 países que compõem as Nações Unidas.

Por um lado, Lula se vê tranquilo ao tentar colocar o País como protagonista da energia verde. Afinal, o Brasil é um dos precursores do movimento de matriz energética renovável. “Fizemos a opção pelos biocombustíveis há 50 anos, muito antes que a discussão sobre energias alternativas ganhasse tração”, lembrou ele. “Estamos na vanguarda em outros nichos importantes como o da produção do hidrogênio verde”, afirmou na sequência, acerca de um tema que vem sendo debatido especialmente com a Alemanha nos últimos anos. Há a intenção de fazer um leilão do segmento no Brasil, com garantia de contratação pelo governo alemão.

Na mesma linha, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ficou responsável por apresentar o Plano de Transformação Ecológica, com o objetivo de atrair novos investimentos. Em destaque, a proposta brasileira para criação do Fundo Tropical das Florestas (TFFF), que visa financiar a proteção de florestas tropicais ao redor do mundo, com potencial para alavancar mais de US$ 100 bilhões de investimentos.

(Mohammed Abed)
(Michael Dantas)
(Moiz Salhi)

Lula criticou os olhos do mundo fechados para a fome (foto acima), defendeu mais recursos para a África, abordou os conflitos no Oriente Médio e a guerra da Rússia e Ucrãnia e, apenas de passagem, falou da situação das queimadas e da seca no Brasil 

Segundo Alexandre Pires, professor de relações internacionais e de economia no IBMEC-SP, destacar a atuação energética do País “é um trunfo” usado pelo Brasil para, de fato, “atrair mais ajuda financeira, diante do papel da descarbonização e preservação dos ciclos naturais”. “Ainda que o País não tenha feito a transição energética do ponto de vista de consumo, por exemplo, com a maior parte da frota a combustão. Não temos grande parque para fabricação de motores elétricos.”

Fernanda Stefanelo, sócia das áreas de Ambiental e ESG do Demarest, o Brasil está “cada vez mais conectado com a chamada economia verde” e tem um grande potencial para traçar um caminho de vantagem competitiva frente aos demais países. “Considerando justamente as fontes renováveis de energia, a extensa biodiversidade e áreas florestadas e as possibilidades de novos negócios mais sustentáveis que têm aumentado cada vez mais no País.”

Por outro prisma, Lula e seu governo têm de equilibrar as palavras – e as ações – para não tropeçar na própria língua. Isso porque o Brasil é um dos mais fortes players de produção de petróleo do globo. “É hora de enfrentar o debate sobre o ritmo lento da descarbonização do planeta e trabalhar por uma economia menos dependente de combustíveis fósseis”, disse o presidente que, antagonicamente, se reuniu fora da agenda oficial em Nova York com o presidente global da petrolífera britânica Shell, Wael Sawan, e o presidente da Shell Brasil, Cristiano Pinto da Costa.

A companhia pretende explorar áreas na Margem Equatorial, especialmente na bacia da foz do Rio Amazonas, que vai do Amapá ao Rio Grande do Norte. Liberar a atuação de empresas para extrair óleo na região – o que é combatido por ambientalistas – é uma decisão estratégica da política energética do governo que deve ser tomada nos próximos anos. A posição do Brasil nessa questão, defendida pelo ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, é de que o País seguirá explorando petróleo “enquanto houver demanda”. Na segunda-feira (23), no Rio de Janeiro, ele afirmou que “está em fase quase final” avançar no diagnóstico das riquezas na Margem Equatorial e, depois, decidir sobre sua exploração [leia entrevista com o ministro à pág. 12].

OUTROS TEMAS

Lula abordou outros temas sensíveis ao mundo em seu discurso. Defendeu envio de mais recursos – e mais baratos – para países pobres e criticou bilionários. “Países da África tomam empréstimo a taxas até oito vezes maiores do que a Alemanha e quatro vezes maior que os EUA”, citou. “A fortuna dos cinco principais bilionários mais que dobrou desde o início desta década, ao passo que 60% da humanidade ficou mais pobre.”

Sobre a América Latina, ressaltou que a região vive desde 2014 uma “segunda década perdida”, com crescimento médio de 0,9% ao ano, metade da “década perdida” original nos anos 1980. “Essa combinação de baixo crescimento e altos níveis de desigualdade resulta em efeitos nefastos sobre a paisagem política”, frisou o presidente, ao mais uma vez atacar o embargo dos EUA a Cuba.

Para Vitoria Saddi, colunista da DINHEIRO e PhD em economia pela University of Southern California, faltou a Lula se aprofundar acerca do que seu governo tem feito para controlar – e prevenir – os incêndios e a seca que há mais de dois meses assolam principalmente a Amazônia e o Pantanal. “Perde-se, de novo, uma oportunidade de se posicionar na ONU como um grande player no contexto do meio ambiente, considerando que o ano que vem quem o Brasil vai sediar e liderar a COP [30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas]”, avaliou Saddi. Sobre esse tema, o presidente travou a língua.