Economia

Haddad e as bets: mercado de apostas é uma sinuca de bico

Entrada do governo na mediação das bets no Brasil vem cercada de conflitos, polêmicas e potenciais efeitos negativos para a economia

Crédito: flickr/freepik

"A publicidade das bets está completamente fora de controle. Esse é um assunto que vamos discutir e levar ao Congresso”, diz Fernando Haddad, ministro da Fazenda (Crédito: flickr/freepik)

Por Paula Cristina

Determina um provérbio chinês que, antes de começar um jogo de azar, o participante precisa ter entendido três coisas: as regras do jogo, a capacidade de aposta e a hora de parar. Sem autor definido, o primeiro registro do adágio foi encontrado em 1200 a.C., em instruções para jogadores de Liubo. Milênios depois, a frase segue atual como nunca. Com a epidemia das casas de apostas no Brasil e no mundo, se fez urgente uma avaliação do tamanho do mercado, e seus efeitos na vida prática. Por aqui, coube ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, equilibrar os pratos chineses.

O primeiro passo foi traçar a regras do jogo;
depois foi necessário mensurar a capacidade de o governo negociar as mudanças e conciliar interesses e,
por fim, avaliar se a aposta dele bastou para lograr os louros esperados pelo governo. E aí começam os problemas.

Por um lado, há forte pressão no Congresso Nacional para ampliar o escopo de empresas autorizadas a organizar os jogos. Há ainda o lobby de empresas de comunicação, que têm obtido altíssimas receitas com as bets, assim como clubes de futebol, torneios esportivos e redes sociais. Na outra ponta, estudos apontam os riscos à saúde do estímulo ao jogo de azar, além de potenciais complicações econômicas, em especial com o comprometimento da renda do consumidor, que inibe diretamente a expansão do PIB.

Pelo lado da economia, Danniela Eiger, autora de um estudo de impacto econômico da XP, sinalizou que o crescimento do mercado de apostas, que tem movimentado cerca de R$ 100 bilhões ao ano, tem sido um obstáculo em um contexto de recuperação da renda. “Isso se dá não somente por competir com outras categorias no uso de valores, mas também por reduzir o ainda limitado poder de compra em função de perdas.” O crescimento deste mercado, que foi regulamentado em 2018, é expressivo. De lá para cá, o crescimento foi de 89%, com expectativa de, nesse ritmo, bater em R$ 200 bilhões em dois anos.

R$ 100 bilhões
é o valor movimentado ao ano com bets no Brasil

R$ 35 bilhões
é valor estimado de retornos aos apostadores

R$ 200 bilhões
é o valor que as bets podem movimentar em 2026

O melhor mapeamento de mercado, até agora, foi feito pela Strategy& e avaliou os Estados Unidos. Por lá, as apostas on-line ocupam 36% do orçamento de lazer de classes de renda mais baixa. E esse número ganhou ainda mais tração após a regulamentação. “Os depósitos em apostas esportivas dispararam no País imediatamente após a legalização, o que sugere uma combinação de curvas de aprendizado, eficácia da publicidade e influências entre amigos/família”, diz Danniela. Com dados de balanço de pagamentos do Banco Central, o Itaú, por exemplo, estimou que os brasileiros movimentaram R$ 68 bilhões em jogos virtuais no acumulado de 12 meses até junho. O gasto líquido, após a dedução do que os apostadores ganharam, foi de R$ 23,9 bilhões.

Antevendo tais desafios, no dia 23 de setembro, 12 entidades do varejo se encontraram com o vice-presidente, Geraldo Alckmin, que ficou responsável pela intermediação com os empresários e ouvir as demandas relacionadas à regulamentação. A principal, inclusive, foi atendida, que envolve proibir o uso de cartão de crédito para apostas.

A ferramenta para diminuir o endividamento da população também foi pedida pelos bancos, que temiam um encarecimento do crédito diante de uma eventual subida da inadimplência. A expectativa é que a proibição passe a valer a partir de janeiro. “Ouvimos os argumentos, vamos levar a discussão ao presidente Lula e à equipe interministerial focada na regulamentação”, disse ele.

Jose Cruz

“Entendemos todas as demandas dos empresários e vamos levar para discussão interministerial. É preciso ter cautela e cuidado para cuidar deste tema.”
Geraldo Alckmin, vice-presidente da República

À DINHEIRO, Oliver Tan Oh, representante da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), que esteve no encontro, disse que os aplicativos de intermediação de pagamento também preocupam. Com eles, o apostador pode fazer um Pix, que seria somado ao valor da sua fatura de cartão de crédito. “Essa seria uma forma de burlar as regras construídas pela Fazenda.”

De acordo com Haddad, tais ações também ajudariam a coibir lavagem de dinheiro e fraudes. “Vamos acompanhar CPFs e CNPJs para identificar movimentações suspeitas e prevenir crimes”, disse o ministro.

OUTRAS EXPERIÊNCIAS

Se você está se perguntando o que o mundo tem feito para lidar com as bets, a resposta é que todos estão tateando no escuro. Até agora, a regulamentação melhor aceita foi feita pela Bélgica, ano passado, quando foram proibidos anúncios de apostas em mídias sociais, TV e estádios esportivos, uma tentativa de reduzir o apelo das bets, especialmente entre os mais jovens e vulneráveis. Para Roger Barbosa, advogado e membro da Comissão Especial de Compliance da OAB/SP, a regulamentação brasileira precisa, de fato, desse aspecto. “É fundamental que se estabeleçam barreiras mais concretas à publicidade massiva das plataformas de apostas, que invadem o cotidiano do cidadão comum, seja na televisão, nas redes sociais ou em eventos esportivos.”

Sobre o assunto, Fernando Haddad afirmou que tal questão está sob análise. “A publicidade está completamente fora de controle”, disse ele. Para isso, o governo estuda encontrar soluções nas próximas semanas para fechar o assunto.

Mesmo com os obstáculos, a expectativa é de concentração do mercado. Pelas normas determinadas pelo governo, 192 marcas de bets estão habilitadas a operar no Brasil, divididas em 89 empresas. Dentro do universo de apostas do Brasil, há mais de 700 marcas operando, o que indica grande possibilidade de fusões e aquisições. Exemplo desse movimento aconteceu no final de setembro, quando a americana Flutter pagou quase R$ 2 bilhões por uma fatia de 56% da brasileira NSX, dona da BetNacional – que foi autorizada a operar.

JUDICIÁRIO

Sob argumento de proteção ao cidadão, a Defensoria Pública da União (DPU) enviou ofício ao Ministério da Fazenda requisitando ações para proteger beneficiários do Bolsa Família que fazem apostas online. À DINHEIRO, o senador Omar Aziz, autor do pedido, citou um levantamento que indicava gastos na ordem de R$ 3 bilhões entre os beneficiários do programa só no mês de agosto, o que corresponde a 20% do total desembolsado pelo governo federal com o Bolsa Família no mesmo período (R$ 14,1 bilhões). Os números ainda não foram publicados oficialmente mas, segundo o senador, já foram enviados ao DPU. E aí vale uma outra máxima, essa bem mais contemporânea, formulada pelo escritor americano Mark Twain. “Para 90% da população, a melhor opção é sempre não jogar. Os 10% se beneficiam da banca”.