O custo da performance
Por Dante Gallian
Palavra latina que procede da união entre o prefixo per, que indica o movimento de iniciar ou fazer algo através de, e o substantivo forma, que remete aos limites materiais de uma substância, àquilo que dá um caráter a algo, a palavra performance chegou à modernidade pelas línguas neolatinas, assumindo o sentido que tem a partir do uso que ganhou na língua inglesa. Na revolução industrial, ela foi utilizada para referir a produtividade das máquinas; nos anos 60 do século passado, foi aplicada para denominar certa forma de apresentação artística que conjugava teatro, música e artes plásticas. Mais recentemente, foi adotada no jargão corporativo, remetendo à ideia de rendimento, produtividade e capacidade de trabalho, de entrega.
Boa parte da literatura especializada, tutoriais, palestras e cursos no campo da administração e recursos humanos giram em torno desse tema, apontando caminhos e apresentando promessas de incremento à performance de executivos e empresários. Tomando como base esse material, temos a impressão de que o objetivo e o valor mais elevado da vida são atingir uma alta performance, uma capacidade de trabalho e um nível de produtividade sempre crescente. Como se não bastasse, tal perspectiva vem contaminando outros setores da existência, fazendo com que a lógica performática impere também no âmbito dos exercícios físicos, da leitura, da realização de experiências e até mesmo dos relacionamentos. De repente, nossa existência passou a estar sob o domínio da lógica performática. Não basta mais viver, trabalhar, namorar e se divertir: é preciso performar sempre, o tempo todo e em tudo o que fazemos.
Nossa existência passou a estar sob o domínio da lógica performática. Não basta mais viver, trabalhar, namorar e se divertir: é preciso performar sempre. A aplicação dessa lógica pode gerar resultados desastrosos, comprometendo a saúde do corpo e da mente
Não é preciso, entretanto, fazer grande esforço reflexivo para perceber que a aplicação dessa lógica performática pode gerar resultados desastrosos em todos os setores da vida, comprometendo também a saúde do corpo, da mente e da alma. A atual pandemia de transtornos psíquicos mostra muito bem essa realidade. Insistimos em viver uma vida que não é própria do humano. Deslumbrados – e talvez invejosos do desempenho das máquinas e sistemas que criamos –, estamos, de forma alienada, emulando-os e destruindo-nos. Isso porque não somos máquinas; não existimos para “performar”, mas para nos realizar – ou, como diziam os gregos da antiguidade, realizar nossa própria beleza, nossa kalokagathia. Mas como vamos realizar nossa própria beleza se já não sabemos o que é o belo? Como escapar da lógica performática para recuperar a lógica humana se já não sabemos mais o que é próprio do humano?
É chegado o momento de uma mudança de mentalidade. É preciso reconhecer que a lógica performática é algo nefasto para a saúde mental e existencial das pessoas, atingindo e comprometendo empresas e negócios. Uma metanoia deve ser realizada no nível das lideranças empresariais para que superemos a dinâmica performática, caminhando em direção a uma dinâmica mais humana, comprometida com o movimento do autoconhecimento e da autorrealização. Esta conversão de mentalidade é um passo essencial para a construção de um sistema de trabalho mais saudável e para um mundo mais sustentável. É preciso que deixemos a performance para as máquinas, para que possamos realizar nossa própria beleza.
Dante Gallian é doutor em História pela USP, coordenador do Laboratório de Leitura da Escola Paulista de Medicina e autor de “Responsabilidade humanística — uma proposta para a agenda ESG” (Poligrafia Editora)