Por que nos conformamos?
Por Jorge Sant’Anna
“E u sei que a gente se acostuma. Mas não devia…”
“A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer…”
“Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado. A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.”
Fragmentos extraídos da maravilhosa crônica “Eu sei, mas não devia”, de autoria da escritora Marina Colasanti, vencedora do Prêmio Machado de Assis 2023 da Academia Brasileira de Letras. Publicada no Jornal do Brasil, em 1972, esta é uma provocação extremamente atual e oportuna sobre como nos conformamos com aquilo que não desejamos e como nos anulamos e perdemos aos poucos o protagonismo de nossas vidas.
Facilmente, nos conformamos com um emprego que não gostamos, nos acostumamos a não ter tempo para os estudos e para o crescimento. Nos relacionamentos pessoais, nos conformamos com aqueles que estão muito longe do que idealizamos; nosso conformismo chega ao ponto de acharmos que somos menores do que realmente somos.
A cada novo desafio em nossas vidas, é possível escolher se os enfrentamos com coragem e determinação, ou se nos conformarmos com um desvio ou recuo. Quando decidimos enfrentar, muitas vezes com sofrimento, nos transformamos. No entanto, quando nos conformamos e recuamos ou desviamos, nos deformamos. E essa deformação acontece aos poucos. A cada concessão nos afastamos do nosso ideal e do protagonismo de nós mesmos.
O filósofo alemão Immanuel Kant, que preconiza que a dignidade se fundamenta em nossa autonomia, concluiu que, sem perceber, nos afastamos de nossa condição de indivíduos autônomos, nos transformando em seres heterônomos, onde nos sujeitamos à vontade e à aceitação de terceiros ou de uma coletividade. A heteronomia se opõe assim ao conceito de autonomia, onde o indivíduo possui arbítrio e pode expressar sua vontade livremente.
O motivo central que nos leva ao conformismo e o impacto deste comportamento nas organizações e também na sociedade são objeto de amplo estudo nos meios acadêmicos, frequentemente referido como “Triângulo Tóxico”, isto é, uma conjunção de três fatores que desenvolvem lideranças altamente destrutivas.
São eles:
• um líder carismático, energético e usualmente destrutivo;
• seguidores suscetíveis;
• e um ambiente propício, usualmente uma crise.
O psicólogo americano Stanley Milgram, num estudo conduzido na Universidade Yale, pesquisou o efeito da autoridade na obediência, concluindo que muitos indivíduos obedecem incondicionalmente por medo ou pelo desejo de parecerem cooperativos, mesmo quando agem contra seu melhor julgamento e desejos. O estudo revelou que, em média, 65% dos indivíduos sob a força da autoridade e influência social podem ser levados a agir completamente contra seus princípios e valores. Resultado realmente impressionante e controverso, mas fácil de comprovar empiricamente.
Temos a todo momento a “desculpa verdadeira” para a acomodação frente a situações que nos desafiam, por medo do desconhecido, de perdermos o emprego, de não sermos aceitos ou por medo do sofrimento. Procuramos sempre o seguro, o conhecido, o tradicional. Quando percebemos, o tempo passou e constatamos que nos distanciamos absurdamente do que sempre sonhamos ser. Passamos a ser o que foi possível.
Nada justifica movimentos bruscos e impensados, principalmente em nossa carreira. Mas menos ainda é justificável a nossa inação, a nossa paralisação e constante postergação de nossos planos, que nos impedem de sermos ativos influenciando nosso ecossistema.
Sejamos a cada dia a nossa melhor versão, em que pese a dor da transformação. Garanto que, no tempo, esta dor é muito menor do que a dor de nos percebermos deformados quando olhamos para nós mesmos.
Diretor-presidente e cofundador da BMG Seguros e membro do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Bancos