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A hegemonia do dólar está ameaçada?

Há décadas se discute se a moeda norte-americana perderá relevância. Movimento dos Brics ressuscita essa possibilidade, mas apenas a China seria a grande beneficiada

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Marcos Strecker: "O presidente Lula, que em seu terceiro mandato ressuscitou o antiamericanismo da velha esquerda, disse recentemente que se perguntava toda noite 'por que todos os países têm que basear seu comércio no dólar?'” (Crédito: Divulgação)

Por Marcos Strecker

A última cúpula dos Brics, na Rússia, conseguiu amenizar um pouco a imagem de pária de Vladimir Putin e terminou com a promessa de adesão de novos membros. Olhando apenas para o cenário da América Latina, a lista de países que devem aderir (Cuba e Bolívia) não promete grandes mudanças no tabuleiro geopolítico. Na prática, os Brics se firmam cada vez mais como líderes do Sul Global, uma nova versão do Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), que havia surgido nos anos 1960 em plena Guerra Fria, e do “Terceiro-mundismo”, que reunia as nações mais pobres em busca de independência diante das potências coloniais.

Essas comunidades teriam prosperado menos se os acordos de Breton Woods, que criaram o sistema financeiro pós-Segunda Guerra (FMI e o Banco Mundial), tivessem de fato conseguido integrar os países pobres na economia mundial. Mesmo assim, é inegável que houve um enorme período de bonança (econômica) no “século norte-americano”. Depois de vários milagres econômicos regionais, a opção chinesa de aderir ao capitalismo de Estado e a organismos como a Organização Mundial do Comércio (OMC) tirou da pobreza centenas de milhões de pessoas e impulsionou a globalização, que aumentou a riqueza de nações por todo o mundo. Mas essa narrativa otimista e linear da história se esfacelou nas últimas duas décadas. A própria ONU, que também emergiu da Segunda Guerra como um fórum de poder efetivo e contenção mundial, está debilitada com a volta do isolacionismo americano.

Os Brics sinalizam um caminho alternativo? É possível, mas a adesão sobretudo de regimes que rechaçam princípios ou o próprio estatuto da ONU (como a Rússia fez frontalmente ao invadir um país soberano) não permite otimismo. É fato que o próprio ex-presidente Donald Trump ajudou a enfraquecer a OMC, ressuscitando o protecionismo e revertendo a expansão do livre-comércio no planeta. Mas o “núcleo duro” dos Brics não parece interessado em ampliar de forma transparente e democrática esse motor de crescimento. Ao contrário, tudo parece servir aos interesses da China, que luta para eliminar a hegemonia americana por meio de acordos comerciais vinculados diretamente aos seus interesses (como a Nova Rota da Seda, que Lula quer integrar).

O canal mais eficiente para isso, que emergiu das reuniões na cúpula russa, foi a aposta em tirar o protagonismo do dólar, eliminando esse “privilégio exorbitante”. A Rússia, em particular, aposta em um novo mecanismo de liquidações internacionais, batizado de Ponte dos Brics, para fugir das sanções econômicas. A China, no entanto, seria o país mais beneficiado. A nação tem papel importante na criação do mBridge, um projeto do Banco de Compensações Internacionais (o BIS, banco central dos bancos centrais), que aposta nessa nova tecnologia de pagamentos digital para tornar as transações entre países mais rápidas e baratas. Para a China (e para os Brics que desejam escapar do “domínio” americano), seria uma forma também de evitar que todas as transações tenham a chancela de bancos dos EUA e ocorram, na prática, via dólar.

Mas a moeda norte-americana permanece forte e lidera largamente a preferência internacional para comércio, investimentos e câmbio. Mais de 50% das reservas internacionais de todas as nações são na moeda americana. Já o yuan, apesar de todos os esforços da China, é menos usado para esse fim desde 2022. Esse paradigma não mudou nos últimos 50 anos. As previsões de que a divisa dos EUA perderia relevância após o abandono do padrão dólar-ouro no início dos anos 1970 não se confirmaram. Atualmente, a maior ameaça ao seu domínio vem da possível eleição de Donald Trump, que poderia minar a influência do seu país ao isolá-lo do mundo com barreiras tarifárias.

Poucos países tiveram acesso ao mBridge (China, Hong Kong, Tailândia e Emirados Árabes Unidos), mas é possível que o know-how desenvolvido no BIS seja de alguma forma “apropriado” pelo maior deles e estendido aos Brics.

Certamente é o sonho de vários participantes desse grupo. Este é um assunto complexo e que vai ainda ter muitos desdobramentos intrincados. Porém, aponta para mais um movimento lento e calculado da China para destronar o dólar na sua Guerra Fria 2.0 com os EUA. O presidente Lula, que em seu terceiro mandato ressuscitou o antiamericanismo da velha esquerda, disse recentemente que se perguntava toda noite “por que todos os países têm que basear seu comércio no dólar?”. Se depender do clube que tenta construir, o comércio poderá ser baseado exclusivamente em yuan. Essa alternativa é melhor?