Piso constitucional e governabilidade: SUS em foco
A tentativa de revisão do financiamento da Saúde deve ser questionada. O Brasil gasta menos do que a média da OCDE, enquanto as famílias gastam mais
Por Ricardo Fasti
Sobre a Saúde e a Educação, “a mudança constitucional é necessária ou o chefe do Executivo, a partir de 2031, não terá a menor margem para governar o País”. Essa foi a declaração do relator do PLO nº 3/24, a Lei de Diretrizes Orçamentárias para o ano de 2025, e com ela se acendem de imediato vários sinais vermelhos acerca do destino desses agregados e seus impactos sobre a população brasileira. O financiamento do SUS é desafiador face à tendência de envelhecimento da população, conforme o IBGE. A demanda por Saúde se tornará cada vez maior com essa faixa terminal da população, havendo transferência da demanda de financiamento privado das famílias para o setor público.
Outro fator que pressiona o SUS são as enfermidades crônicas, cujo custo da doença cresce com o envelhecimento. Asma, diabetes e doenças cardíacas pressionarão o sistema, principalmente público: de medicamentos a atendimento de alta complexidade. Some-se a esses fatores a emergência da próxima pandemia e seu impacto, que se tornam um evento de risco que deve ser enfrentado com medidas preventivas associadas à formação de capital e de mão de obra de serviços de Saúde, com reflexos sobre o financiamento do sistema.
O Sistema de Contas Nacional inclui Contas-Satélites que permitem a análise macroeconômica dos agregados. A Conta-Satélite da Saúde: Brasil 2010-2021 registra que em 2021 o consumo final de bens e serviços de Saúde representou 9,7% do PIB (R$ 872,7 bilhões), sendo 4,7% a parcela do governo e 5,0% o gasto das famílias. O Reino Unido e a França, em 2021, consumiram com bens e serviços da Saúde 12,3% do PIB. Em relação à OCDE, os gastos do governo brasileiro são 54% dos gastos dos países membros.
O governo brasileiro gasta relativamente menos que países da OCDE, tanto em termos absolutos quanto relativos, apesar do tamanho da população e das doenças de um país tropical. As famílias no Brasil, por sua vez, gastam 2 vezes mais com serviços de Saúde, em termos percentuais, do que franceses ou ingleses. A Constituição brasileira, em seu artigo 196, determina que a Saúde é direito de todos e dever do Estado, portanto o Estado deveria ser o maior responsável pelo financiamento direto, ou pela criação de mecanismos, ainda que substitutos a transferências, que garantam o acesso universal.
A previsão feita sobre o risco de ingovernabilidade caso não haja revisão constitucional do piso de financiamento da Saúde precisa ser questionada, pois os números demonstram que o Estado brasileiro está atrás da média da OCDE, enquanto as famílias gastam mais. O envelhecimento da população limitará a capacidade de as famílias arcarem com os atuais níveis de gastos, forçando o Estado a rever para cima o piso de gastos, movimento contrário ao que o relator aponta como necessidade.
Há poucos estudos demonstrando os possíveis ganhos de produtividade do SUS, respectivas potencialidades de economia ou racionalização de gastos. O indicador ICSAP (Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária), que refere-se a condições de Saúde para as quais o manejo, o tratamento e as intervenções adequadas realizadas no nível da atenção primária poderiam potencialmente prevenir a internação hospitalar, apresenta queda consistente ao longo da década, significando que menos internações ocorreram por intervenções tempestivas na atenção básica e primária. Qual é o direcionamento dessas economias?
Pouco se sabe sobre a eficiência econômica geral do sistema e se os atuais gastos são ótimos. O envelhecimento é fato, tanto quanto o risco de novas pandemias. Antes de se sugerir cortes, modelagens e análises de cenários são necessárias. É uma questão econômica, social e constitucional, antes de ser fiscal. Também é certo que há muitas outras áreas no Orçamento que podem ser alvos de corte, mas o custo político é bem maior, isso é sabido. As incertezas sobre o SUS apresentam mais riscos à governabilidade do que o piso constitucional. Quanto à Educação, é um outro artigo.
* RICARDO FASTI é economista, doutor em Administração e especialista em Educação e Estado. Atua em planejamento estratégico e desenvolvimento organizacional no Instituto Jô Clemente e Korn-Ferry. Foi diretor-executivo da Business School São Paulo. É professor de Educação Executiva no Insper