O pacote de incertezas de Haddad vai vingar? Especialistas comentam
Depois de semanas de suspense, o governo divulga plano de cortes de despesas, mas as medidas desagradam o mercado financeiro. Resultado: o preço do dólar bateu o recorde histórico e ultrapassou a marca de R$ 6
Por Viviane Monteiro
Após semanas de negociações indigestas, inclusive com o PT e alguns ministros da área política que não desejavam a implementação do plano de corte de gastos sociais, e de incertezas sobre o conteúdo do pacote de ajuste fiscal que trazia dados pífios, nesta quinta-feira, 28, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que o governo cortará R$ 71,9 bilhões em despesas da máquina pública nos próximos dois anos. Mas o mercado financeiro considerou as medidas insuficientes, o que provocou uma alta recorde no preço do dólar: a maior cotação nominal da história, de R$ 6,09, atingida logo depois de o governo apresentar o programa aos jornalistas, em evento concorrido e iniciado por volta das 8h30.
Isso comprovou, mais uma vez, que os economistas de bancos e de empresas do mercado financeiro não estavam gostando nada do que ouviam.
● A alta recorde no preço do dólar já havia sido alcançada no dia anterior, quarta-feira, 27, quando as cotações atingiram R$ 5,91, já com base nos números conhecidos e divulgados pela equipe econômica a conta gotas por dias a fio.
● A maior desvalorização do Real, até então, aconteceu no dia anterior, pouco antes de um pronunciamento de Haddad em rede nacional na TV, às vésperas da entrevista concedida por um grupo de seis ministros da área econômica, da política e da comunicação, incluindo Haddad.
● Eles tentavam convencer a sociedade, na entrevista ao vivo desde o Palácio do Planalto, de que o conjunto de ações era positivo. E não era. A maioria entendeu que as medidas não garantirão o equilíbrio das contas públicas e o cumprimento do arcabouço fiscal.
No pronunciamento de Haddad, feito com falas editadas e transmitidas em rede nacional, o ministro não detalhou o pacote, mas afirmou que as medidas consolidavam o compromisso do governo com a sustentabilidade fiscal. “Para garantir os resultados que esperamos, em caso de déficit primário, ficará proibida a criação, ampliação ou prorrogação de benefícios tributários”, disse com o semblante tenso.
Embora sejam fundamentais para evitar o estrangulamento das contas públicas, especialmente às vésperas das eleições presidenciais de 2026, as medidas são consideradas insuficientes para garantir a sustentabilidade do regime fiscal no longo prazo, principalmente devido à isenção do Imposto de Renda (IR) para salários de até R$ 5 mil mensais.
Essa medida, anunciada na quarta, 27, não faz parte do pacote de corte de gastos, pois, afinal, a isenção ampliará as despesas públicas em R$ 35 bilhões. Economistas suspeitam que o governo ofereceu essa benesse à classe média, como resposta política, sobretudo ao PT, já que no dia seguinte Haddad anunciaria medidas impopulares, com cortes em reajustes do salário mínimo, do abono salarial aos aposentados e da redução do BPC, pago aos desvalidos.
O impacto da renúncia fiscal é estimado em R$ 470 bilhões nos próximos quatro anos. Segundo cálculos do diretor da Macro Contabilidade e Consultoria, Wesley Santiago, especialista em tributos e impostos, a expectativa é de que a isenção do IR até R$ 5 mil beneficiará 36 milhões contribuintes, que representam cerca de 78,3% da totalidade de 46 milhões de pagadores desse imposto, conforme levantamento da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco), que subsidiou a proposta do governo.
Para compensar as perdas de receitas com os tributos, na ponta do lápis o governo propõe alíquota mínima de 10% de IR sobre a renda acima de R$ 50 mil mensais, o equivalente a R$ 600 mil ao ano. Esse grupo é considerado “superrico” obtendo receita mensal com alugueis, rendimentos financeiros e salários, entre outras rendas. A previsão do governo é enviar essas duas medidas em projeto de lei ao Congresso Nacional ainda este ano para ser discutida no decorrer de 2025 e começar a vigorar em 2026. Essa, aliás, é uma promessa de campanha do presidente Lula. Em maio do ano passado, o governo estendeu a correção ao salário de até R$ 2.640,00. Até aí, a isenção limitava-se à renda de até R$ 1.903,98. A última correção foi em 2015, quando a defasagem era calculada em 148%, lembrou o contador.
A medida agravou o nervosismo dos investidores e abalou o ânimo do mercado em relação às expectativas sobre o pacote. Em outras palavras, intensificaram-se as incertezas entre economistas no contexto do quadro fiscal, agravadas pelo “cobertor curto” das contas públicas. Além da disparada no câmbio, o Ibovespa, principal índice do mercado acionário, despencou 1,73%, atingindo 127 mil pontos.
● Com o desenho atual do arcabouço fiscal, na leitura dos analistas da XP, em relatórios internos, a redução de despesas não implica melhoria no resultado primário, que dependerá de aumento de receitas.
● As medidas, contudo, devem ampliar a flexibilidade do governo para implementar bloqueios e contingenciamentos.
● No relatório, os analistas estimam que as medidas adotadas podem reduzir despesas em até R$ 32,7 bilhões em 2026, valor que tende a crescer, contudo, para R$ 145 bilhões em 2034, pouco mais de 0,6% do Produto Interno Bruto (PIB).
Haddad garantiu ainda que o abono salarial será mantido para quem ganha até R$ 2.640, em prejuízo do que recebiam acima disso até agora. Esse valor será corrigido pela inflação nos próximos anos e “se tornará permanente” quando corresponder a um salário mínimo e meio.
Redução de privilégio
Em outra parte do pacote, Haddad confirmou a redução de antigos privilégios dos militares das Forças Armadas. A proposta fixa idade mínima de 55 anos para oficiais passarem para a reserva. Hoje não existe idade mínima. O tempo de serviço, de pelo menos 35 anos, é o critério adotado para a aposentadoria dos militares. “Para as aposentadorias militares, nós vamos promover mais igualdade, com a instituição de uma idade mínima para a reserva e a limitação de transferência de pensões, além de outros ajustes. São mudanças justas e necessárias.” As propostas foram negociadas nos últimos dias entre o presidente Lula e o ministro da Defesa, José Múcio.
Apesar de o ministro afirmar que a pasta está em sintonia com o corte de gastos, a cúpula da Marinha, além de alegar o direito adquirido dos oficiais, demonstrou “preocupação” com eventual corrida de militares para aposentadoria precoce.
A semana foi marcada pela intensificação da corrida do ministro Haddad para o fechamento do pacote em meio ao nervosismo do mercado em relação ao atraso das medidas e incertezas sobre o quadro fiscal do país.
O pacote foi fechado, de fato, na segunda-feira, 25, em reunião no Palácio do Planalto, com o presidente Lula e 21 ministros, incluindo o da Fazenda. Entretanto, após o encontro, antes da divulgação das medidas à imprensa, Lula considerou pertinente conversar com os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), além de líderes partidários das duas Casas. Na pauta, acordos e pedido de apoio político para tramitação de medidas que ainda dependerão da aprovação do Congresso. Lira e Pacheco prometeram votar parte do pacote ainda este ano, embora o recesso parlamentar comece dentro de 15 dias.
O atraso na divulgação dos detalhes do pacote de corte de gastos e a ausência de clareza do governo sobre as medidas, por um tempo prolongado, geraram ruídos na comunicação governamental, contribuindo para agravar as incertezas sobre o quadro fiscal.
Para o economista Sidney Lima, analista da gestora Ouro Preto Investimentos, esses fatores contribuíram para manter o dólar em alta. Se tivessem demorado mais, poderiam pressionar também setores dependentes de importações. “Setores como infraestrutura e bancos, mais sensíveis à estabilidade fiscal, acabam sendo impactados negativamente no curto prazo.”
Militares são atingidos por medidas
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou os detalhes das medidas que integram o pacote de ajuste fiscal cujos impactos serão de R$ 71,9 bilhões nos próximos dois anos, dos quais R$ 30,6 bilhões em 2025 e R$ 41,3 bilhões em 2026.
● Os cálculos são de R$ 327 bilhões de 2025 a 2030 no enxugamento das despesas da máquina pública.
● Entre as principais medidas destaca-se a reforma da aposentadoria das Forças Armadas, que pode gerar receita de R$ 2 bilhões de 2025 a 2026, conforme o relatório da Fazenda.
● Uma delas acaba com a transferência da pensão familiar. Outra fixa idade mínima (55 anos) para a reserva, ou seja, aposentaria.
● Enquanto outro ponto acaba com a chamada morte “fictícia”.
● A medida propõe ainda a dedução de 3,5% da remuneração do militar para o Fundo de Saúde até janeiro de 2026.
Por outro lado, o pacote propõe isenção do imposto de renda (IR) para até R$ 5 mil reais mensais com impacto nas contas somente em 2026. O ministro garantiu que não haverá perda de arrecadação com essa medida, já que a compensação se daria pela incidência de tributação do IR dos mais ricos.
Outra medida estabelece critérios para o Bolsa Família, impondo biometria para inscrição e atualização cadastral. Enquanto outro ponto cria novas regras para o reajuste do salário-mínimo, mantendo a regra de crescimento real pelo PIB, mas com a variação real dentro dos limites do arcabouço fiscal. Outro alvo do pacote são as emendas parlamentares (PLP 175), cuja expansão seria limitada também às regras arcabouço fiscal, além de destinação de 50% dos valores para o Sistema Único de Saúde (SUS).