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Por que o acordo Mercosul-UE assusta a França e como o Brasil vai desatar esse nó

Crédito: Ricardo Stuckert / PR

Ursula von der Leyen (de azul) e os presidentes do Mercosul finalizam o acordo em Montevidéu, na sexta-feira (6) (Crédito: Ricardo Stuckert / PR)

Por Regina Pitoscia

RESUMO

● Mercosul e União Europeia finalizam tratado de livre comércio depois de mais de duas décadas de negociações
● Mas há obstáculos a superar
● A disputa dos agricultores franceses contra a carne brasileira é um dos deles
● E sinaliza que ainda haverá embates difíceis

O acordo entre o Mercosul e a União Europeia (UE), fechado no último dia 6, em Montevidéu, com a presença da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, terá um longo caminho a percorrer e será colocado gradualmente em prática, mas já é comemorado por empresários brasileiros. Em termos práticos, significa que não há mais divergências entre todos os países participantes em relação às condições para o livre comércio entre os dois blocos.

O pacto deve criar um sistema comercial robusto, envolvendo:
● cerca de 720 milhões de pessoas,
● um PIB conjunto de US$ 22 trilhões.

Para o Brasil, os números são igualmente vistosos e positivos:
a perspectiva de acréscimo superior a R$ 94 bilhões, o que corresponde a 5,1%, do comércio atual com os países europeus,
● um impacto de R$ 37 bilhões sobre o Produto Interno Bruto.

Parceria que ganha ainda mais relevância e envolve muitos interesses em um mundo que caminha para a fragmentação, diante de ameaças protecionistas e de aumento de tarifas feitas por Donald Trump, e da crescente polarização entre China e Estados Unidos.

Não por menos, esse acordo pode servir ainda de limite para essas mesmas pretensões de Trump. Se as portas dos EUA vão se fechar ou dificultar os negócios globais, as da Europa parecem estar cada vez mais abertas para eles, também como forma de aumentar sua influência e frear a aproximação da China sobre a região.

Os líderes do Mercosul celebram o fim das negociações em Montevidéu, dia 6. A presença de Ursula von der Leyen (ao centro), presidente da Comissão Europeia, era dúvida até a véspera do encontro (Crédito:Ricardo Stuckert / PR)

Para países que formam o bloco do Mercosul – Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia –, assim que passar a valer, o acordo de livre comércio prevê a redução gradual de tarifas nas importações de produtos dos 27 países europeus.

● Com a queda nos custos de insumos e bens de capital, os produtos do bloco sul-americano passam a ganhar competitividade no mercado global.

● Nas exportações, haverá um regime de concessão de cotas e controle de importação para preservar o equilíbrio da produção e comércio locais. Devem crescer os investimentos tanto na Europa como nos países da América do Sul, em função de estímulos e desburocratização.

Segundo um estudo do banco BTG Pactual, o Brasil é o maior exportador de soja, milho, café, açúcar, suco de laranja, carne bovina e carne de frango do mundo. Com o pacto de cooperação, o País deve aumentar sua participação e protagonismo no mercado global.

Mesmo entre os especialistas, existem divergências sobre quais serão os trâmites a partir de agora até que o acordo entre em vigor. É certo que passará por tradução em idiomas de todos os países envolvidos e revisões jurídicas. No Mercosul, o texto deverá ser aprovado pelos Parlamentos de cada um dos cinco membros. É um processo bem mais simples.

Produtores rurais protestam no dia 2 de dezembro no departamento de Gers (sul da França),em oposição ao tratado com o Mercosul (Crédito:Jean-Marc Barrere)

Já na UE, o caminho poderá ser longo, burocrático e encontrar a resistência de alguns países. Uma das interpretações é a de que lá o acordo precisará passar pelo crivo do Conselho da União Europeia, formado por ministros de governos, e do Parlamento Europeu, composto por deputados dos respectivos países. Para a aprovação deverá haver consenso da maioria, de 55% dos países-membros, desde que respondam também por 65% da população do bloco.

A França é contra e tenta formar um grupo de, pelo menos, quatro países que respondam por 35% da população do bloco para conseguir barrar o acordo.

Em contrapartida, há especialistas que afirmam haver um atalho para fazer o acordo entrar em vigor de forma rápida, sem a necessidade de aprovação dos Parlamentos de cada país. A Comissão Europeia teria a prerrogativa de fazer uma separação entre a parte comercial e a política para que o livre comércio tenha início em curto espaço de tempo, ainda que provisoriamente.

A FRANÇA

Seja qual for a distância desse trajeto, a França já avisou que vai lutar contra a conclusão do acordo em cada etapa do processo. Sendo um dos maiores exportadores agrícolas do mundo, o país afirma que os produtos do Mercosul entrariam em condições desiguais de competitividade, com prejuízos aos produtores locais.

De forma mais taxativa, a Polônia e a Irlanda também se colocam em oposição à assinatura final do documento, enquanto Alemanha, Portugal e Espanha são declaradamente a favor. Mas todos sabem da importância em ter outros fornecedores em opção à Rússia, encalacrada em guerra com o Ucrânia e também de prováveis dificuldades para exportar para a maior economia do mundo, os EUA, diante de aumento de tarifas sinalizado por Trump. Poder contar com o abastecimento dos produtos e a preços competitivos passa a ser estratégico para os europeus.

Há que se considerar a posição delicada de Emmanuel Macron em meio à instabilidade política e queda de seu primeiro-ministro, Michel Barnier, na véspera da finalização do acordo em Montevidéu. Em pronunciamento à nação, ele teria precisado carregar nas tintas em críticas ao acordo para manter o apoio da direita – em especial, dos produtores agrícolas. Não foram coincidência, ou mero acaso, os ataques a produtos do Mercosul e à carne do Brasil dias antes, marcados por fala de políticos e do presidente global do Carrefour. Mas sim uma tentativa de impedir a parceria.

Para o produtor francês, a cooperação entre os dois blocos representa desafios ainda mais significativos. Pelos dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), a França tem apresentado desempenho inferior a de outros países em termos de eficiência. Desde 2000, seu índice de produtividade, ou a Produtividade Total dos Fatores (PTF), cresceu apenas 16%, enquanto países como China, Índia e Brasil apresentaram aumentos de 70%, 58% e 53%, respectivamente, de acordo com publicação da Rede Rural.

Produção de aves no Paraná. O Brasil exporta mais de 2 milhões de toneladas de carne bovina, 1 milhão de carne suína e cerca de 4 milhões de toneladas de frango (Crédito:ANPr/ SINDIAVIPAR)

O site do Parlamento Europeu traz informações que expõem outras dificuldades e fragilidades do agronegócio francês.
● Por exemplo, cerca de 14% da receita agrícola francesa referem-se a subsídios públicos, necessários para cobrir custos com trabalho, terra e capital.
● Nível que está na média para países da UE, mas corresponde ao dobro de subsídios concedidos à Dinamarca, onde representam 7% de toda a receita.
● O salário médio na União Europeia é de €14,65 por hora. A França remunera um valor próximo a essa média, mas abaixo de países como a Dinamarca, que paga €27,70 por hora, em média.
● A participação de mão de obra terceirizada na produção francesa é significativa, chega a 35%, enquanto em alguns países a mão de obra familiar representa 98% do tempo trabalhado.

Adotar medidas protecionistas a seus produtores é um direito deles, afirma Roberto Giannetti da Fonseca. Mas isso não deve nem pode ser feito com ataques levianos, mentirosos e sem provas, lembra ele. No caso do presidente global do Carrefour, Alexandre Bompard, que anunciou a interrupção de compra de carnes do Mercosul e, portanto, do Brasil para a rede na França, alegando que o produto não atende a normas e exigências sanitárias da União Europeia, “houve deslealdade, foi uma forma rasteira e desleal de tentar proteger os produtores franceses. Um executivo desprezível, que não teve a honestidade intelectual de explicar o protecionismo”.

Vários empresários franceses do setor de supermercados fizeram coro ao Carrefour e também anunciaram que suspenderão a compra de carne do Mercosul. Mesmo depois de ter voltado atrás e se retratado quanto às críticas, o estrago já estava feito.

Para o professor Cláudio Felisoni de Angelo, da FIA Business School, do ponto de vista de volume, a suspensão das compras não deve ter impacto nas exportações brasileiras. Já do ponto de vista de imagem, sim, houve prejuízo, porque Bompard lançou dúvidas sobre a qualidade da carne.

Segundo a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), de janeiro a outubro deste ano, a França importou 356 toneladas de carne bovina do Brasil, o que representa 0,53% do volume exportado para a União Europeia, ou a 0,015% do total exportado pelo País.

“Todo comprador é relevante para o Brasil, mas a França perdeu imensa importância, devido ao grande crescimento da Ásia. Ela compra pouquíssimo e dá muito trabalho, faz muito ruído, agride e não representa quase nada”, afirma Marcos Fava Neves, professor de administração da USP, em Ribeirão Preto, e da FGV, em São Paulo. Para Neves, “os comentários de empresários e agentes públicos franceses foram feitos de forma deselegante e ofensiva e refletem total falta de conhecimento da produção brasileira, que lidera em sustentabilidade no mundo”.

Ele concorda que essa postura tem um forte viés protecionista, visando a manutenção dos empregos e dos negócios na França, em prejuízo do consumidor final, que é obrigado a pagar um preço mais alto pelos produtos, devido a esta proteção.

LIXO

A carne do Mercosul foi comparada a lixo por parlamentares franceses, ao afirmar que o gado é criado na região com hormônios de crescimento, uso massivo de antibióticos e soja transgênica. “Eles não têm nenhuma razão para criticar a carne brasileira. O Brasil já exporta para a União Europeia. O agronegócio brasileiro é para a Europa, o mesmo que manufaturados chineses representam no mercado europeu. Eles perderam competitividade e não há quem consiga chegar no mesmo nível”, explica Giannetti.

“É uma questão mais política”, afirma Lia Valls, pesquisadora do FGV Ibre e professora da UERJ. “A França nunca apoiou o acordo, porque o setor agrícola francês tem uma força política importante, ainda que não pese quase nada no PIB do país”.

Para ela, a reação não foi novidade, ainda mais considerando que o governo francês está enfraquecido e com problemas na economia. Como terão também de se adaptar às novas exigências e regulações da Comissão Europeia em relação à emissão de carbono e desmatamento, os produtores locais se sentem mais ameaçados para enfrentar as importações de países que são competitivos.

Os franceses também costumam bater na tecla de que a produção agrícola no Brasil não é sustentável, quando o tema é desmatamento. Felipe Fabbri, da Scot Consultoria, explica que “a área utilizada pela agricultura francesa é muito maior proporcionalmente do que a utilizada no Brasil, para a produção agrícola. Nossos produtos são muito mais competitivos que os franceses, e não somos subsidiados como a agricultura francesa”.

Esse cenário tem gerado a onda de protestos na França. “Eu não acredito que seja um argumento suficiente para o impedimento das exportações da carne brasileira.” Ocorre que, nesse caso, os produtores são menos eficientes, menos produtivos e perdem competitividade para o agronegócio brasileiro.

EXPORTAÇÃO

O Brasil é líder global na exportação de carne bovina, detém uma fatia de 24% do total das exportações de carne feitas ao redor do mundo. De acordo com dados da Abiec, o País exporta para 157 países, e do total exportado de janeiro a outubro deste ano, 2,4 milhões de toneladas, ou 80%, foram para a China, o equivalente a 1 milhão de toneladas. Na segunda posição aparecem os Estados Unidos, com 175.193 toneladas, e em terceiro, os Emirados Árabes Unidos, com quase 125 mil toneladas. Ainda entre os principais mercados estão Hong Kong, Chile, Filipinas, Egito, Rússia, União Europeia e México.

Felisoni, da FIA Business School, faz o seguinte raciocínio: se o Brasil exporta para o mundo todo mais de 2 milhões de toneladas de carne bovina, 1 milhão de carne suína, algo como 4 milhões de frango, de forma recorrente, é porque “a pecuária brasileira e, portanto, a carne brasileira atingiu um padrão de qualidade que é respeitável e, por isso, alcançou um posicionamento de destaque no mercado mundial”.

Foram décadas dedicadas à evolução do setor para ganhar mercado, aprimorando controles e qualidade fiscal e eliminação doenças, relata Giannetti da Fonseca. “Aí vem um francês desinformado, mal-intencionado e coloca o produto como algo perigoso para ser consumido, de ser ingerido.”

O professor da faculdade de direito da USP Fernando Scaff afirma que as acusações dos empresários franceses sem provas abalam a credibilidade do produto brasileiro. “Houve um dano de imagem, que pode se desdobrar em prejuízo financeiro, efetivo ou potencial. Basta imaginar, como a suspeita sobre a carne brasileira será interpretada pelos chineses, que são os maiores consumidores de carne brasileira no mundo.”

Para que isso não se repita, segundo Scaff, é necessário pressioná-los com uma ação judicial. “Há que se estudar todo um pântano processual que existe, inclusive para definir se para isso é melhor acionar os empresários na França ou no Brasil, e eles terão de se defender diante da pressão para indenização financeira.” Como consequência, poderão ter propriedades e contas penhorados.

Nesse sentido, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) assumiu a dianteira e estuda mover uma ação contra o Carrefour e outros empresários que anunciaram que vão deixar de comprar carne de países do Mercosul. Uma atitude que pode ser caracterizada como uma violação das regras de defesa da concorrência da União Europeia. A Confederação deve formalizar uma reclamação, por meio de um escritório em Bruxelas para fazer valer a liberdade econômica e a proteção da produção brasileira no mercado da UE. E podem ocorrer novas disputas.

CARNE FRANCESA

Tiago Costa Alencar, consultor da Domani, especializada em processos de importação e exportação, lembra que a partir do dia 30 de dezembro entram em vigor as normas que proibirão a circulação de commodities como gado, soja, madeira, cacau, café, borracha natural e óleo de palma provenientes de áreas de desmatamento no mercado da União Europeia. O que também pode servir de barreira para a entrada de produtos brasileiros na Europa. E com a aprovação do acordo com o Mercosul, Giannetti da Fonsenca acredita que os protecionistas franceses devem atacar ainda mais a sanidade da carne e a questão ambiental.

Para países do Mercosul, haverá a redução de tarifas nas importações dos 27 países europeus. Com a queda nos custos de insumos e bens de capital, os produtos ganharão competitividade globalmente

É no mínimo curioso essa postura, quando o setor francês de carne traz em seu histórico fraudes que ganharam repercussão, como as noticiadas pelo prestigiado jornal Le Monde.

Em 2023, 24 pessoas foram condenadas, em Marselha, por vender carne de cavalo considerada imprópria para consumo humano, como se fosse carne de alta qualidade. A presidente do tribunal, Céline Ballerini, condenou a gravidade da fraude, afirmando que ela “era evidente e poderia comprometer a segurança sanitária no território nacional e no exterior”. Não foi o único caso de repercussão.

Em 2013, produtores estavam comercializando carne de vacas leiteiras, já no final de sua vida produtiva, como se fosse de qualidade superior. Essas vacas, após anos de reprodução e produção de leite, apresentam uma carne menos tenra e saborosa em comparação com animais criados especificamente para o abate. A prática de vender essa carne como se fosse de alta qualidade acaba fraudando os consumidores e levanta preocupações sobre a transparência na cadeia alimentar.

Esses casos destacam a importância de uma vigilância contínua e de regulamentações rigorosas para garantir a integridade da cadeia alimentar e proteger os consumidores contra fraudes, tanto lá como aqui.

São exemplos de como ainda podem se expandir os embates entre setores e países que podem criar embaraços para viabilizar de fato o tratado que foi negociado por mais de duas décadas e chegou a ser assinado em 2019, ainda durante o governo Bolsonaro. Dificuldades criadas pelo agronegócio na Europa, assim como restrições levantadas pelo presidente Lula após tomar posse, em relação às compras governamentais, levaram representantes dos blocos de volta às mesas de negociação. Espera-se que agora de fato esse grande bloco vingue, trazendo de volta a esperança no futuro da globalização.