Entenda como a Nvidia furou a bolha das Big Techs e se tornou gigante em tecnologia
Companhia de chips e data centers chega ao valor de US$ 2 trilhões e entra de vez para o seleto grupo das maiores do setor, que agora é Big Six
Por Beto Silva
RESUMO
• Empresa americana já a terceira maior do setor, atrás apenas de Microsoft e Apple
• Em 22 de fevereiro, a companhia ganhou US$ 277 bilhões em valor de mercado — superior ao valor total de Petrobras, Vale, Itaú e Bradesco juntas.
• A ação da Nvidia subiu 239% em 2023, maior percentual entre as companhias do índice S&P 500
• Em uma década, com soluções de data centers e chips de alta performance, a receita aumentou 1.375%
• Analistas observam que o crescimento é sólido e a aposta em IA qualifica a Nvidia para liderar o futuro
Logo depois de a empresa americana de tecnologia Nvidia alcançar pela primeira vez em sua história o valor de mercado de US$ 1 trilhão, em 30 de maio de 2023, exatos 30 anos depois de sua criação, o fundador e CEO, Jensen Huang, reuniu sua equipe de líderes globais. O objetivo era passar um ensinamento fundamental, o qual levara a companhia até aquele patamar. “Play the game, the score will come”, disse Huang ao time. Significa que, com trabalho duro, foco e determinação, coisas boas vão acontecer naturalmente. A mensagem “jogue o jogo, o resultado virá” é mais do que um mantra corporativo para o executivo. É um lema de vida.
Nascido em Taiwan em 1963, foi enviado por seus pais aos Estados Unidos quando tinha apenas 9 anos, para viver com parentes enquanto seu país passava por problemas sociais. No Oneida Baptist Institute, em Kentucky, Huang viu até briga de canivetes entre crianças. Além de observar a violência, estudava e trabalhava — foi escalado para limpar banheiros da instituição. Era o jogo a ser jogado naquele momento.
Estudioso e focado em ter uma vida melhor, formou-se engenheiro elétrico na Oregon State University (OSU), onde chegou a ser campeão de tênis de mesa. Mas gostava mesmo de jogos de computador. Atuou nas empresas de chips LSI Logic e Advanced Micro Devices antes de abrir seu próprio negócio, a Nvidia. Corta para 2024. A companhia de Huang acaba de encostar na marca de US$ 2 trilhões em valor de mercado. Exatos US$ 1,942 trilhão na quinta-feira (29), apenas nove meses depois de galgar seu primeiro trilhão.
O patamar agora alcançado a coloca definitivamente entre as maiores do mundo no ramo tecnológico. E o seleto grupo das cinco gigantes do setor (Big Five) está definitivamente redesenhado para Big Six, com a Nvidia sendo a terceira maior em valor de mercado, atrás de Microsoft e Apple e à frente de Amazon, Alphabet (Google) e Meta (Facebook).
O feito ocorre logo após a divulgação (21 de fevereiro) dos resultados do quarto trimestre e do fechamento do ano fiscal de 2024. Em um único dia (22 de fevereiro) a companhia ganhou US$ 277 bilhões em valor de mercado — superior ao valor total de Petrobras, Vale, Itaú e Bradesco juntas.
E o fundador viu sua fortuna subir US$ 23 bilhões. Com US$ 68,5 bilhões de patrimônio, já era a 21ª pessoa mais rica do mundo no ranking de bilionários da Forbes de quarta-feira (28).
“A computação acelerada e a inteligência artificial generativa atingiram o ponto crítico. A demanda está aumentando em todo o mundo entre empresas, indústrias e nações”, disse Jensen Huang, em comunicado. Foi contido, até porque os dados já eram previstos.
• As vendas no período de novembro de 2023 a janeiro de 2024 foram de US$ 22,1 bilhões, 265% superiores ao mesmo período do ano anterior.
• A América Latina foi responsável por 7% desse montante (US$ 1,54 bilhão).
• O Brasil sozinho, por 5% (US$ 1,1 bilhão).
• O lucro líquido atingiu US$ 12,28 bilhões, aumento de 769%.
• Já o ano cheio registrou US$ 60,9 bilhões de faturamento, salto de 126% ante o período passado, com lucro líquido de US$ 29,76 bilhões, 581% maior do que 2023.
E os dados superlativos não param por aí. A ação da Nvidia subiu 239% no ano passado, maior percentual entre as companhias do S&P 500. Nada mal para uma empresa que dez anos atrás, em 2014, faturou US$ 4,13 bilhões.
Eram outros tempos: naquele ano o Orkut saía de cena; os drones, até então de uso militar, começavam a ser comercializados para o público civil; os smartwatches ainda eram vistos com receio; e o Instagram tinha apenas três aninhos de vida. Ou seja, a tecnologia, de maneira geral, era incipiente. Em uma década, a receita da empresa aumentou 1.375%.
Head de análise da Levante, Enrico Cozzolino avalia que a Nvidia se antecipou às tendências, fez pesquisas e desenvolveu soluções para a realidade que vivemos agora e tem um potencial gigantesco de crescimento à frente. “Aquilo que inicialmente eram simples placas de vídeo, processadores e foco em game, hoje é inteligência artificial, veículos autônomos, robótica, metaverso, aplicações 3D da internet e tantas outras verticais. Algo que não apresentava esse volume nos primórdios da companhia.”
QUÂNTICO
É uma onda passageira que a Nvidia tem surfado? Não, de acordo com Daniel Marques, presidente da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L). “A tendência é só aumentar. Surgirem novas empresas, aplicações e iniciativas, porque a inteligência artificial exigirá cada vez mais capacidade computacional”, disse. “Cada vez mais iremos democratizar o acesso ao computador quântico, que também exige uma grande capacidade computacional. Novas tecnologias serão criadas para atender essas demandas”, afirmou. Marques, aliás, defende um Plano Nacional de IA, inclusive com a criação de fábricas de produção de chips no Brasil. “O trem está passando.”
Se Jensen Huang foi moderado em sua análise sobre os resultados recentes, terá a oportunidade de ser mais efusivo na conferência anual da companhia, a Graphics Technology Conference (GTC), de 18 a 21 deste mês, na Califórnia (EUA). Na abertura, o executivo falará sobre como explorar os avanços da inteligência artificial que estão moldando o futuro. Serão 550 expositores, 10 mil pessoas presentes e 650 mil participantes remotos. Também deve abordar os resultados históricos obtidos recentemente. Vai dar seu recado aos colaboradores e parceiros: “Play the game, the score will come”.
A Nvidia tem redefinido a computação com soluções de data centers e chips de alta performance, em que detém 80% do mercado global. Dificilmente será ameaçada por concorrentes, considera Vivaldo José Breternitz, doutor em Ciências pela USP, professor da Fatec-SP, consultor e diretor do Fórum Brasileiro de Internet das Coisas. “A capacidade de produzir chips voltados à IA decorre de custos elevados de mão de obra e equipamentos. Quem quer disputar esse mercado tem de investir muito dinheiro.”
Estivesse em uma peça de teatro, a Nvidia seria uma personagem coadjuvante. Ou melhor, estaria na coxia, garantindo a infraestrutura para o espetáculo. Foi assim com o ChatGPT, da OpenIA, atualmente na mira dos holofotes. Foi a companhia criada por Huang que ofereceu à empresa de Sam Altman uma até então inédita arquitetura com oito GPUs (Unidade de Processamento Gráfico) para rodar a ferramenta que hoje é a vedete da tecnologia mundial.
Marcio Aguiar, diretor da divisão Enterprise da Nvidia na América Latina, resume de forma didática a atuação da corporação. “Nosso trabalho é solucionar problemas complexos que um computador comum não soluciona, para tornar as coisas mais eficientes”, disse. Assim, vai de coadjuvante a protagonista.
Com chips e microcomputadores superpotentes, a Nvidia trabalha para solucionar problemas complexos que sistemas comuns não resolvem. Mais eficiência com menos gasto de energia
No concorrido jogo da tecnologia, acirrado pela disputa das trilionárias Big Six, a Nvidia não é concorrente. Pelo contrário. A companhia é parceira e tem como cliente a maioria delas.
• O Copilot, ferramenta de produtividade da Microsoft alimentada por IA, tem infraestrutura Nvidia em sua base. A plataforma permite que os usuários aprimorem criatividade, produtividade e habilidades.
• Com a Amazon, a novidade, lançada em novembro, é a colaboração estratégica da Nvidia para oferecer infraestrutura de supercomputação, software e serviços para IA generativa, por meio da AWS, a divisão de cloud da gigante fundada por Jeff Bezos. São muitas vertentes desse projeto, que inclui o Project Ceiba, um supercomputador de IA alimentado por GPU mais rápida do mundo e cargas de trabalho pesadas de design, vídeo e simulação.
• Com o Google, a Nvidia está presente no recém-lançado Gemma, que reduz custos e acelera inovações, ao permitir que desenvolvedores atinjam a base instalada de mais de 100 milhões de GPUs Nvidia RTX disponíveis em PCs de alto desempenho.
Saindo da bolha das gigantes de tecnologia, a Nvidia também está no dia a dia do cidadão comum. Em sua linha de soluções para automóveis, fornece chips para a maioria das montadoras. Destaque para a chinesa BYD, que embarca componentes Nvidia para os sistemas inteligentes dos carros elétricos, como câmeras e sensores, e para as telas internas dos veículos.
Puxando o jogo para o lado do Brasil, um dos principais clientes é a Petrobras, que possui supercomputador e necessita de processamento e equipamentos para a complexa operação de exploração e produção de óleo e gás. Geração de dados, previsões, melhoria da gestão e segurança da operação e prevenção de acidentes estão entre as tarefas.
INCEPTION
A Nvidia também observa as startups como parceiras. O programa Inception ajuda essas empresas promissoras a evoluírem rapidamente com o acesso à tecnologia de ponta e especialistas da Nvidia. São criadas oportunidades de conexões com investidores e suporte de comarketing para aumentar a visibilidade.
No mundo, são 16 mil startups ligadas à companhia, sendo 606 na América Latina, 402 no Brasil, 120 das nacionais trabalhando com IA generativa.
Entre as brasileiras no projeto estão a MedRoom (aplicações para ensino de medicina usando Realidade Virtual), a Hoobox (para a jornada hospitalar) e a CyberLabs (IA e cibersegurança).
Com grandes ou pequenas empresas, mas sempre com inovações ancoradas em IA, a Nvidia segue sua jornada rumo ao terceiro trilhão. Sempre jogando o jogo, pois o resultado vem naturalmente.
Entrevista
Marcio Aguiar, diretor da divisão Enterprise da Nvidia na América Latina
“Estamos apenas começando. Com os pés no chão e espírito de startup”
Os resultados apresentados do quarto trimestre surpreenderam o mercado. A companhia já esperava por ele?
Marcio Aguiar – Sabíamos que teríamos trimestre recorde e já anunciamos guidance do primeiro trimestre também recorde [com previsão de US$ 24 bilhões de receita]. Isso porque temos compromissos de entrega de mais e mais soluções com os nossos grandes clientes e parceiros globais. O mercado está aquecido. As corporações estão fazendo muito investimento no âmbito da IA, principalmente com o aumento da demanda do ChatGPT, IA Generativa. Passamos daquele momento em que todos estavam descobrindo como isso se encaixaria em seu negócio. Estamos confiantes que continuaremos crescendo.
É, de fato, o início de uma nova era?
Obviamente falam sobre onda, sobre bolha. Vemos que existe muita gente começando, engatinhando. A Nvidia é muito conhecida no mercado de game e de computação gráfica. E agora muitos dizem que estamos surfando nesse mercado de IA. Não é isso. A gente está na linha do horizonte balançando o mar para as ondas chegarem até o mercado. Esse é nosso posicionamento dentro do ecossistema.
No resultado divulgado do quarto trimestre, o Brasil tem participação de 5% dos US$ 22,1 bilhões de receita. O mercado de tecnologia brasileiro está mais amadurecido do que muitos pensam?
Está sim. Muita gente tem usado a nuvem, ainda não exatamente da maneira correta. Estão refinando o uso dessa tecnologia. Vamos continuar nessa crescente. Estamos começando. Esses 5% é um número que nos surpreende muito, porque em geral as companhias multinacionais têm as regiões da América Latina e Europa mais oriental colaborando com 2% a 3%. Isso ocorre não só pelo acesso à nuvem, mas também porque nossos vizinhos acabam usando a nossa infraestrutura. Temos influência dos países vizinhos. Temos o papel de transformar as empresas brasileiras e os pesquisadores nacionais em criadores. Não apenas consumir a tecnologia, que já está próxima de todos. Temos muita coisa a explorar em agricultura, saúde, automóvel…
De que áreas são os principais clientes da Nvidia no Brasil?
Entre as principais indústrias no Brasil está energia, dividida em óleo e gás, que gera automaticamente demanda por pesquisa e desenvolvimento, pois 1% do lucro [das estatais do setor] deve ser investido em P&D, e mercado de telecomunicações. Quando anunciarem o 6G já teremos isso rodando sobre nossas GPUs, com processadores mais avançados e robustos. E temos ainda finanças e varejo, com adoção rápida e positiva para produtos Nvidia. E para avançar no mercado, nossa estratégia não é convencer o cliente a comprar, é mostrar o nosso valor.
Quais os principais produtos que o mercado brasileiro tem demandado?
Temos visto grande procura por computação de borda, Edge Computin. São placas ou superminicomputadores com potência muito alta e consumo de energia muito baixa. A principal técnica de IA utilizada por aqui é a visão computacional. Muitos ambientes com câmeras que rodam em cima de software de inteligência customizada. A IA generativa ainda não está 100% instalada no Brasil porque requer um pouco mais de investimento em infraestrutura, pois demanda muita GPU, além de machine learning.
Como funcionam as parcerias da Nvidia com universidades?
Essa é nossa raiz, nascemos e crescemos trabalhando com universidades e laboratórios nacionais. Aprendemos e colaboramos com eles. Temos parceria muito forte com Unicamp, USP, PUC-RJ, PUC-RS, laboratórios como o LNCC (Laboratório Nacional de Computação Científica), o LNLS (Laboratório Nacional de Luz Síncrotron). E parcerias com startups, que são gerenciadas por pesquisadores e engenheiros com coragem de empreender. Esses braços nos distancia da concorrência, pois nossas soluções são respaldadas por mais de 4,5 mil empresas parcerias globalmente, desenvolvendo e construindo com a gente.
Qual a visão interna da companhia ao sair de uma situação de coadjuvante para ser protagonista global no concorrido mundo da tecnologia?
Muto bacana ver esse reconhecimento. Mas não mudou em nada nossa maneira de pensar e nosso compromisso com o ecossistema. Vamos continuar sendo os melhores afinadores de guitarra, melhores maquiadores das modelos, para deixar eles brilharem. Enquanto isso, focamos no que temos de melhor, que é desenvolver novas tecnologias e nos manter sempre à frente do mercado, sempre vistos como pioneiros. Estamos apenas começando. Continuamos com os pés no chão e espírito de startup, com tecnologia no core, inovação, sem medo de errar.