Negócios

Enel: a concessão que deu errado

Distribuidora de energia que abastece a maior cidade do País se torna símbolo de fracasso da iniciativa privada em serviços públicos e entra na mira das agências de regulação e do governo, que podem cassar parte dos negócios dela no Brasil

Crédito: Mauricio Lima

Maior cidade do País, São Paulo tem enfrentado constantes interrupções no fornecimento de energia e demora absurda na retomada dos serviços (Crédito: Mauricio Lima)

Poucas empresas conseguiram despertar tanto a ira e a insatisfação dos consumidores quanto a Enel. A companhia italiana, que opera concessões no Rio de Janeiro, no Ceará e na Grande São Paulo — principal fonte de problemas nos últimos meses — vive um momento complexo e delicado. Com uma infraestrutura defasada e, em muitas regiões, sucateada, a empresa vem descumprindo a exigência de fornecimento de energia e o rápido reestabelecimento do serviço quando há intercorrências. Quando chove, cai a luz. Se venta, cai a luz. Com sol e calor, falta energia. Em março, alguns bairros do centro de São Paulo chegaram a ficar cinco dias sem energia, situação que seria revoltante em qualquer país do mundo.

Os problemas envolvendo a Enel fizeram soar o alarme no governo federal.
Na segunda-feira (1º), o ministro Alexandre Silveira (Minas e Energia) acionou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para abrir um processo disciplinar contra a distribuidora.
Na avaliação dele, os apagões em São Paulo tornaram a empresa insustentável.
Em última instância, a medida pode culminar no fim do contrato de concessão da empresa.

“Os contratos com distribuidoras de energia são frouxos e não atendem ao requisito principal de suprir as necessidades básicas do consumidor, fazendo com que o serviço fique aquém do esperado”, afirmou o ministro. “O governo pode remediar a situação ao renegociar as concessões.”

Mateus Bonomi

Nos próximos meses, a empresa estará sob um processo de caducidade. A Enel mostra de forma reiterada que é despreparada.”
Alexandre Silveira, ministro de Minas e Energia

A ofensiva do governo contra a Enel não deve se prolongar muito. A Aneel deve ter uma resposta sobre o processo contra a Enel em aproximadamente 20 dias. “Nos próximos meses, a empresa estará sob um processo de caducidade [perda de concessão]”, disse Silveira. “A Enel mostra de forma reiterada que é despreparada para prestar serviço à população.”

A Enel assumiu as operações da antiga Eletropaulo em 2018. Desde então, é a maior distribuidora de energia do País em número de consumidores.

A insatisfação de Silveira com a Enel tem um histórico.
A empresa não pagou as multas que já foram impostas por conta da interrupção do serviço.
Em fevereiro, a Aneel aplicou multa de R$ 165 milhões à empresa em decorrência do apagão em São Paulo em 3 de novembro de 2023.
Naquela época, quase 5 milhões de pessoas da capital paulista ficaram às escuras. Em alguns bairros, o serviço levou 8 dias para ser reestabelecido.

“Estamos tomando uma medida extremamente radical, uma medida importante, uma medida educativa para as outras distribuidoras”, afirmou o ministro. “Faremos com que a Enel dê uma resposta aceitável aos paulistanos.”

A pressão do ministro tem o apoio do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), que já vinha pedindo a revisão da concessão. “Essa empresa tem que sair daqui. Estamos nesse sofrimento com uma empresa que fala que tem plano de contingência, mas que não cumpre”, disse Nunes, durante o último apagão.

Lojas e residências da região central da cidade tiveram de recorrer a velas para suprir a interrupção da energia durante mais de uma semana (Crédito:Ato Press)

O inferno-astral da companhia não é apenas azar.
Os investimentos da Enel em sua área de concessão em São Paulo, que cobre a capital e 24 municípios da região metropolitana, caíram 16,14% em 2023.
O valor investido recuou de R$ 1,95 bilhão em 2022 para R$ 1,64 bilhão em 2023.
No mesmo período, a base de clientes da companhia aumentou em 168,2 mil unidades consumidoras, segundo informações da Aneel, passando de 7,59 milhões de clientes para 7,76 milhões.

Ou seja, o corte dos investimentos da Enel coincide com a piora nos níveis de qualidade dos serviços prestados.

A Enel, em resposta, afirma que tem feito o possível para contornar os problemas. Em nota, a distribuidora disse que “cumpre integralmente com todas as obrigações contratuais e regulatórias e está implementando um plano estruturado que inclui investimentos no fortalecimento e na modernização da estrutura da rede, na digitalização do sistema e na ampliação dos canais de comunicação com os clientes, além da mobilização antecipada de equipes em campo em caso de contingências”.

A companhia informou ainda que já pagou parte das multas aplicadas pela Aneel e outras encontram-se em fase de recurso, seguindo trâmites normais do setor. Segundo o grupo italiano, nos últimos anos foram feitos grandes investimentos para elevar a qualidade do serviço e enfrentar os desafios por que passa o setor elétrico, com os efeitos das mudanças climáticas. Em São Paulo, desde 2018, quando assumiu a concessão, a Enel já investiu R$ 8,36 bilhões, com média de cerca de R$ 1,4 bilhão por ano.

Mateus Bonomi

“Essa empresa tem que sair daqui. Estamos nesse sofrimento com uma empresa que fala que tem plano de contingência, mas que não cumpre.”
Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo

ENTRAVES

Mesmo que intenção do governo seja cassar a concessão da Enel, o processo não é tão simples quanto a fala de Silveira.

O processo é complexo e demorado, com possibilidade de recursos em várias instâncias, direito de plena defesa à companhia e apresentação de soluções alternativas, segundo Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel. “O contrato de concessão é muito claro quanto a quais são as infrações que podem resultar na caducidade, e a qualidade do serviço é uma delas”, afirmou. “Não sei se a melhor forma de se fazer as coisas é pressionando a Aneel. É bom para a opinião pública, mas não sei se é a maneira mais adequada”, disse.

Santana explicou que a Aneel, mediante processo de fiscalização, identifica se a concessionária cometeu infrações em relação ao que é exigido por lei e por contrato para a prestação de serviço de distribuição de energia, e se é necessário pedir a caducidade do contrato. A partir de duas infrações, a empresa é intimada e pode se defender. “Um processo desses leva no mínimo dois anos para uma empresa pequena; no caso de uma companhia do tamanho da Enel, que vai ter banca de advogados, demora mais”, afirmou.

Seja qual for o desfecho da novela Enel, o fato é que a empresa terá de dedicar muita energia nas estratégias para reverter a péssima imagem conquistada nos últimos meses. Com ou sem a concessão, a distribuidora entrará para a história como um caso de privatização que não deu certo.