“Os pontos positivos no PL das Fake News podem tornar Brasil referência”
Patricia Peck transformou seu escritório de advocacia na principal autoridade para construir pareceres e teses que viram sustentação jurídica no campo do Direito digital. Apaixonada por tecnologia, ela é otimista em relação ao papel do País na vanguarda das discussões sobre o mundo virtual
Editora Três
Edição 16/06/2023 - nº 1329
Por Edson Rossi
Patricia Peck Pinheiro é um dínamo. No dia da segunda sessão de entrevistas para a DINHEIRO ela havia acordado antes das 4h. O Peck Advogados (aberto em 2004 e do qual é fundadora e CEO) atende quase cinco centenas de clientes e tem mais de uma centena de funcionários — dois terços mulheres. É um reduto de inteligência e soluções no Direito digital. Mas a trajetória dela na advocacia é torta: sua praia é a tecnologia.
A morte do pai aos 35 anos num acidente de trânsito, quando ela tinha 6 anos, acelerou seu amadurecimento e a entrada no mundo adulto. E isso se deu pela tecnologia. Os videogames e computadores pessoais que a mãe trazia das viagens internacionais (os pais foram da Varig) eram raros entre crianças brasileiras do começo dos anos 80.
Ainda adolescente, montou sua BBS (Bulletin Board System, sistema que integrava uma rede informatizada por meio de linhas telefônicas). Com essa jornada, não haveria como separar o direito da tecnologia.
Doutora por ter feito doutorado e não por tratamento corporativista, Peck tem uma visão do universo jurídico disruptiva e inovadora, bem antes de as duas palavras virarem moda. Seu olhar transversal traz de soluções a empresas à educação digital. “Precisamos educar as crianças sobre ética e segurança. Por exemplo: ensiná-las aos 6 anos sobre como criar senha segura.”
DINHEIRO — Não há como separar sua trajetória profissional de sua fascinação pelo mundo tecnológico. Qual característica foi decisiva para criar esse vínculo?
Patricia Peck Pinheiro — Máquinas são mais obedientes que pessoas. E na minha casa a obediência, a disciplina, sempre foram importantes. Coisas que a aviação criou em meus pais. O check list, o check de portas, o treinamento intensivo. Pessoas não cumprem o combinado e me perturbavam. O computador, não. Você escreve o código e ele é superobediente. Tudo bem que às vezes o computador parece estar ‘possuído’, tem alguma coisa que não funciona, mas ele também tem seus direitos [risos].
Por que não ter feito computação, então?
Teve muito a ver com meu padrinho, que foi concierge do The Plaza, em Nova York. Sempre o visitava, por causa das viagens da minha mãe, e ele dizia que deveria me mudar para ‘a Nova York brasileira: São Paulo’. Paralelamente, uma professora de história perguntou por que eu gostava tanto de computador e respondi que um computador lê a regra e segue a regra. Pessoas, não. Mas no início dos anos 90, ninguém falava de ciências da computação. Ela me disse, ‘então vá para a faculdade das regras (o Direito).’ Entrei no Direito do Largo São Francisco (USP).
E como foi descobrir o mundo do Direito?
No primeiro dia na faculdade, cheguei com meu notebook da Texas Instruments. Era a única. Todos passaram a me conhecer. Professores, alunos, pessoal da TI. Logo criei um site e virei de vez a ‘menina da informática’, da tecnologia.
O mergulho efetivo no digital se dá como?
No meu último ano, eu me sentia incompleta na formação, em crise. Decidi fazer um curso na Extension School em Harvard. Depois fui para a Business School. Todo mundo falando de digital economy, de criar sites. Isso era 1997, 1998. Fiz vários cursos. Aprendi a construir business plan, pitch, saber o que é Ebitda, e muito do mundo digital. Nada que se aprende no Direito.
A formação está defasada?
O MEC só colocou Direito digital como disciplina obrigatória em 2021. A realidade da sociedade já mudou completamente, e ninguém na faculdade está falando disso. O estudante não tem uma aula no laboratório de computação para saber como captura uma evidência dentro do celular para ter valor de prova diante de um juiz. É como um médico passar pela faculdade de Medicina sem saber sobre um braço biônico, um novo medicamento. A faculdade de Direito está dentro de uma bolha.
“Tudo virou prova eletrônica. Tudo está registrado. Não existe mais fazer uma coisa que ninguém fica sabendo”
Como mudar?
É preciso que os professores passem por reciclagem. Mas a maioria está sentada numa cadeira achando que o que tinha para aprender já aprendeu. E a OAB precisa colocar esses temas (digitais) na prova. Porque aí a faculdade se corrige e dará o conteúdo.
Até mudar, qual a consequência?
Prejudica decisões judiciais, a capacidade de escrever lei. Prejudica todo o ecossistema.
De certa forma, você se antecipou a isso.
No ano em que prestei a OAB, em 1999, todos falavam de bug do milênio. Passei a frequentar a Comdex, a Fenasoft (eventos de tecnologia), para estar informada. E perguntava aos meus amigos técnicos sobre o bug. E eles me devolviam: ‘E no campo jurídico, o que vai rolar? Processos, indenizações?’ Fui estudar, ler, buscar as respostas.
Foi quando veio o convite para falar na Comdex?
Sim. Um professor da escola de Direito de Harvard, que viria palestrar, não pôde viajar e eu fui chamada para substituí-lo. Tinha 22 anos. Um jornalista deu matéria sobre a palestra. E pediu dica de um livro em português, que não existia. Dessa provocação nasceu Direito Digital (2002, hoje na sétima edição), obra referência. O livro acabou virando cartão de apresentação.
E te levou a ser ‘a’ especialista nesse campo…
Sim. E fez nascer minha relação com a produção de conteúdo. O conteúdo gera contatos, que geram indicações, que levam aos clientes em consultoria — empresa que mantenho até hoje, a Intelligence. Meus contatos eram de áreas tão distantes que me aproximei do mundo da publicidade e fui de novo aos Estados Unidos estudar: storytelling, product placement, entertainment law. Voltei e virei VP dessa área na Young & Rubicam até sair por umas declarações numa entrevista sobre o mercado de empresas de telecomunicação. Uma delas era cliente da agência e fui mandada embora. Fui demitida no dia do meu aniversário (12 de setembro), em 2003.
Qual foi a reação?
Saí para beber com meu marido e ele disse: ‘Ainda bem que você foi mandada embora, porque agora finalmente abre seu escritório.’ E em 2004, fundo o escritório. Numa sala sem janela. Mas assim que abro a porta começo a ter como clientes Amil, Bradesco, Itaú, Petrobras, Redecard, Yahoo… Até hoje atuamos não olhando o Direito do passado.
Olham para o quê?
Em estar conectado com o mundo dos negócios. Nosso tripé é direito-tecnologia-negócios. É nosso mantra. Atendo no escritório hoje 40 setores, 450 empresas. Temos 70 advogados e eles precisam ser apaixonados por tecnologia. [Há outros 40 profissionais, sete robôs, dois chatbots e um console de Atari em que ela deu uma surra no entrevistador jogando River Raid].
Que preocupação as empresas devem ter?
Hoje não temos somente uma concorrência desleal digital, temos uma concorrência desumana. Porque bots, por exemplo, aplicam na bolsa. E quanto mais perto do servidor da bolsa ele está menor é a distância para a ordem de compra. Ele está na frente de você sempre. E a B3 deixa botar lá dentro, basta pagar pra isso. O mesmo acontece em venda de ingressos.
Numa parede da Peck Advogados há uma timeline com vários marcos, quebras de paradigmas. Quais você destacaria?
Várias, mas fiquei obcecada com uma: a testemunha é a máquina. Tudo virou prova eletrônica. Tudo está documentado. Tudo está registrado. Não existe mais fazer uma coisa que ninguém fica sabendo. Vivemos numa sociedade de transparência total do ser humano. Nos obrigou a mostrar a juízes que se a testemunha é a máquina, precisava de ordem judicial para ‘ouvir’ a máquina. De forma urgente, liminar, porque a máquina apaga registros antigos por causa de um princípio na computação, a ordem de volatilidade. Isso ‘inaugurou’ o escritório.
Quais outros?
Nossa tese de legítima defesa digital.
Como assim?
Mostramos que mesmo uma empresa privada poderia ter uma área de segurança e combate a fraudes e criar nela, por exemplo, um dossiê probatório para gerar evidências de autoria. Porque a gente precisa pegar o bandido com a mão na máquina, gerar o flagrante digital. E depois passar para a polícia. Isso viabilizou nossa área de cibersegurança e me levou a atuar também na área educacional, na pública e na militar [Peck coleciona medalhas de honras militares por seus serviços no Brasil e fora].
O terceiro…?
Vivemos a sociedade paperless. Papel é uma tecnologia ultrapassada para registrar uma relação entre as partes. Tive de explicar a juízes, ao Banco Central, explicar a muita gente que o digital é físico.
Explique para mim.
Digital é matéria, tem átomos. A gente não vai discutir com os físicos, os matemáticos, Galileu, Newton, Einstein… A partir disso construímos toda a tese de que assinatura digital é válida, contratação digital é válida, documento eletrônico é válido.
E as demais teses?
A quarta foi a teoria do risco. Novos modelos de negócios digitais trazem riscos intersistêmicos. De concorrência desleal digital a responsabilização de plataformas.
Por fim?
Precisamos educar as crianças sobre ética e segurança digital desde o primeiro ano do Ensino Fundamental. Isso fez eu criar o Instituto Start, em 2010. Não adianta fazer lei, fiscalizar, punir, se a gente não educar, se não existir política pública.
Que tipo de educação?
Por exemplo, a idade para uma criança aprender a fazer uma senha segura é com 6 anos. Isso deveria ser obrigatório pelo MEC.
Você faz parte do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD) que anda sem comando? O que acontece?
Estamos sem presidente por falta de indicação pelo governo federal. Já são seis meses. Somos 23 conselheiros titulares, escolhidos pela sociedade para tratar da proteção de dados, e tudo está paralisado. Ficam duas leituras. Uma é de que o tema não é prioridade para este governo; a segunda é saber a quem pode interessar a paralisação, que a agenda da LGPD caminhe sem o conselho.
“Não podemos confundir imunidade parlamentar com impunidade parlamentar. É preciso punir fake news”
Como você avalia o PL 2630, das Fake News, que nem foi votada porque o governo temia uma derrota na proposta?
Há mais pontos positivos que negativos. Precisamos de regulamentação, e o Brasil pode ser referência internacional nisso.
Grandes plataformas lutam para manter zonas de proteção, não?
Soft law. Bastava autorregulamentação. Que elas escrevessem os códigos de conduta das melhores práticas. Esse foi o grande erro das plataformas.
O que mais me incomodou foi a imunidade parlamentar. É o parlamento mantendo os privilégios de sempre…
Não podemos confundir imunidade parlamentar com impunidade parlamentar. É preciso punir desinformação, fake news.
O que você quer deixar como legado?
Sempre me enxerguei como estrategista. A faculdade de Direito me ensinou mais o mundo do contencioso, o reativo, e quero mostrar que o Direito digital é a inovação do setor. O upgrade do Direito. Para tornar a sociedade mais ética, transparente, segura, saudável e sustentável. Trabalho para isso e me sinto, e gostaria de ser conhecida e reconhecida, como uma inventora.