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“Fontes limpas integradas a baterias em larga escala mudarão o sistema elétrico”, diz Carlos Evangelista, da ABGD

Para o executivo à frente da Associação Brasileira de Geração Distribuída, a regulação do setor permitiu beneficiar 3,6 milhões de consumidores exclusivamente com recursos privados. E a tendência é um aumento acelerado, com vantagens econômicas, sociais e ambientais

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Carlos Evangelista: missão de organizar o setor de geração distribuída oriunda de fontes renováveis (Crédito: Divulgação )

Por Celso Masson

Em 2015, quando decidiu reunir um grupo de empreendedores do setor de energia elétrica para fundar a Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD), o empresário Carlos Evangelista encontrou apenas 15 interessados. Formado em Engenharia Elétrica e em Direito, com MBA em Marketing, pós-graduação em Comunicação de Marketing e especialização em Política e Estratégia, ele já havia trabalhado na multinacional Ericsson e era então diretor executivo da GM Technology. Foi dessa posição que viu uma necessidade do mercado: organizar o setor de geração distribuída oriunda de fontes renováveis por meio de criação de uma entidade de direito privado. A ABGD, sediada em São Paulo, nasceu para agregar os mais diversos players do segmento, como provedores de soluções, integradores, investidores, distribuidores e fabricantes de equipamentos. Hoje, são mais de 1.150 associados. Em seu quarto mandato como presidente, para o biênio 2024-2025, Evangelista tem acompanhado de perto as transformações do setor de energia no País, que tem na geração distribuída um fator decisivo para favorecer a transição energética com vistas à sustentabilidade econômica e ambiental. “O Brasil avançou rapidamente nesse campo. Já são 2,6 milhões de sistemas de mini e microgeração que beneficiam 3,6 milhões de unidades consumidoras”, afirmou Evangelista. “Isso corresponde a potência de duas usinas de Itaipu”. E o que é melhor, com dinheiro privado.

DINHEIRO — Qual o panorama atual do mercado de geração distribuída no Brasil?
CARLOS EVANGELISTA — A geração distribuída (GD) começou a ser regulamentada no Brasil há 20 anos, em 2004, quando a legislação tornou possível injetar energia na rede de distribuição. Mas isso só era feito por grandes usinas, com potência maior que 30 megawatts (MW). A resolução normativa 482 da Aneel, publicada em 2012, passou a permitir que todos os consumidores de baixa tensão, o chamado grupo B, pudessem produzir a própria energia e abater de seu consumo. Isso foi bastante aprimorado com o marco legal de Geração Distribuída (Lei 14.300/2022). Naquela ocasião já havia o equivalente a quase uma Itaipu de potência instalada em GD, fornecendo energia de forma limpa e sustentável. De lá para cá, essa capacidade dobrou. A GD hoje no Brasil corresponde a duas Itaipus, uma rede em que 2,6 milhões de sistemas instalados beneficiam 3,6 milhões de unidades consumidoras. Tudo com investimento privado. Isso é absolutamente relevante e estratégico para o País. Basta lembrar aquele período em que tivemos as bandeiras tarifárias na conta de luz. Sem a GD, teríamos pago ainda mais caro pela energia elétrica.

O sonho de todos nós é ficar livre de boletos, seja de energia, plano de saúde ou internet. Isso já é possível no caso da conta de luz?
Mesmo com o advento da geração distribuída o consumidor não consegue se livrar do boleto da conta de luz, porque existe a tarifa mínima. No entanto, é possível abaixar bastante o valor da energia consumida da rede. E isso ocorre a partir de vários modelos de negócios. Há desde o modelo em que adquirimos a própria usina e instalamos em cima do telhado até o modelo da geração compartilhada, em que não é necessário investir recursos próprios porque alguém investe na aquisição dos equipamentos e os custos são compartilhados a posteriori. Quem não tem condições de instalar placas fotovoltaicas no telhado, poderá, através da geração compartilhada, aderir a serviços de energia por assinatura.

Esse modelo vem crescendo no Brasil?
Em termos de modelo de negócio do setor elétrico, esse é o que mais cresce. Isso foi introduzido na resolução 687, em dezembro de 2015, que passou a permitir a entrada de cooperativas e consórcios na geração distribuída. Um grupo investe na usina e divide o benefício com todos os cooperados ou consorciados. Na minha opinião, essa é uma das ferramentas mais democráticas de inclusão social e distribuição de renda que tivemos no setor elétrico nos últimos 30 anos. Porque antigamente, se eu quisesse entrar no setor elétrico, não havia a menor chance. Teria de arranjar alguns milhões de reais para investir em um empreendimento gerador. Agora não, com poucos recursos, e até se não tivermos recurso nenhum, é possível ingressar no segmento.

Essa democratização afeta os resultados dos grandes players do setor elétrico?
Em tese, não afeta. Existe uma discussão sobre quanto o prossumidor [produtor-consumidor] de geração distribuída paga pelo uso da rede de distribuição. A nossa tarifa de energia é formada por vários componentes: geração, transmissão, distribuição, impostos, perdas… não faz sentido a GD pagar por perdas se ela ajuda a mitigar as perdas, por exemplo. Isso porque a energia injetada na rede é consumida localmente, conhecido como “efeito vizinhança”, percorre menos distância no fio e as perdas se tornam muito menores. Além disso, a GD não utiliza as linhas de transmissão. Devido a tudo isso, o marco legal previu incentivos para alavancar a geração distribuída e compensar o investimento.

O Brasil tem uma matriz energética limpa, mas ainda usa termelétricas, uma fonte mais cara e poluente. O que justifica isso?
Parece um contracenso em um país que tem 83% de energia limpa e renovável, no entanto, as térmicas ainda são necessárias para compensar a intermitência de outras fontes, como solar e eólica, ou mesmo em um período de escassez hídrica. Isso porque não se capta energia solar à noite ou pouco se capta com céu muito encoberto, não há vento constante em todos os pontos e pode haver períodos sem chuva em que o nível dos reservatórios baixa e as hidrelétricas ficam impedidas de funcionar. Não precisamos colocar mais térmicas, na verdade o que precisamos é incentivar o uso de baterias em larga escala, integrado com GD. As baterias já estão caindo de preço. Quando elas atingirem a paridade, o que deve ocorrer entre o final de 2026 e o início de 2028, mudará completamente o sistema elétrico como nós o conhecemos.

O que seria essa paridade?
A paridade ocorre quando o custo de armazenamento na bateria se torna competitivo em relação ao da produção de energia elétrica pelas fontes convencionais. Ou seja, no momento em que armazenar a energia de fontes renováveis for mais barato que produzir a partir de combustíveis fósseis, a conta fecha. Hoje o custo de um quilowatt hora armazenado em uma bateria ainda é mais alto que o de uma térmica. Com a bateria custando menos, mudará tudo, porque não precisaremos trazer a energia de longe. Além disso, conseguiremos compensar a intermitência das fontes limpas. Acabará o problema de não produzir energia solar à noite, por exemplo.

Por isso o lobby das térmicas ainda é forte?
Existe uma entidade chamada Fase (Fórum das Associações do Setor Elétrico) que reúne 38 associações do setor elétrico. Uma delas é a Associação Brasileira de Carbono Sustentável, mudou de nome recentemente. Ainda existem empresas fortes que dependem desse setor e cidades inteiras cuja economia é baseada nisso. Eles também desenvolvem tecnologias para reduzir as emissões e o impacto da queima de carvão, no entanto, o custo desse processo é cinco vezes maior, então não faz sentido investir em inovar a tecnologia. Não tem futuro no contexto da transição energética, mas ainda existe essa demanda.

A preocupação com a sustentabilidade é o maior vetor de transformação do setor?
A geração distribuída vai continuar crescendo porque atende aos três pilares da sustentabilidade. O econômico, o social e o ambiental. Do lado econômico, é muito mais barato produzirmos a própria energia no local de consumo do que trazer essa energia de longe. No social, já são 805 mil empregos qualificados para o setor e crescerá mais nos próximos anos, com grande ocupação de técnicos, instaladores e engenheiros. No plano ambiental, as fontes limpas e renováveis são indiscutivelmente mais seguras e saudáveis para o planeta, alinhado com a preservação do meio ambiente e a transição energética.

Existem 90 milhões de brasileiros ligados à rede de baixa tensão e 2,6 milhões produzindo a própria energia. A tendência é que mais pessoas produzam a eletricidade que consomem?
Os brasileiros estão percebendo os benefícios do investimento em geração de energia. O desconto mensal pode chegar a 95% em relação à tarifa cheia. Mas é possível ter 10% de abatimento sem investimento algum, apenas aderindo a um serviço por assinatura. Como os benefícios são bastante perceptíveis no bolso do consumidor, a tendência é crescer cada vez mais. Os carros elétricos, por exemplo, são uma tendência irreversível. Vamos atingir a predominância da mobilidade elétrica mais cedo ou mais tarde. Haverá uma transição com uma frota híbrida até que os pontos de recarga não sejam mais um problema. E como levaremos a energia até esses pontos de recarga? Produzindo energia localmente.

A geração local pode ser de qualquer fonte?
Sim, embora a solar seja a mais adequada na maioria dos casos. O Brasil tem sol ano inteiro e ela não gera resíduo e ou ruído. Temos vento de norte a sul, biomassa, biogás, redes hídricas extensas. Precisamos aproveitar melhor todo esse potencial.

O Brasil tem descoberto mais reservas de petróleo o gás. Isso pode ser um desestímulo para a adoção de mais fontes renováveis?
Temos um parque industrial com máquinas pesadas que funcionam a gás. O que faremos com todo esse parque industrial? Jogar fora? Temos de aproveitar tudo isso. E, se estamos descobrindo novas reservas de gás, devemos aproveitar essas reservas também. Claro que há desafios técnicos e desvantagens, mas teremos que desenvolver as soluções renováveis para que elas se tornem mais sustentáveis e viáveis na indústria também.

O marco legal trouxe, de fato, segurança jurídica e regulatória para que o setor se desenvolva?
Mais do que isso, a Lei 14.300 trouxe várias mudanças positivas importantes. Uma delas foi remuneração proporcional ao uso da rede. Antes, se eu tivesse uma microusina e injetasse 100 quilowatts hora no sistema, eu receberia de volta 100 quilowatts hora em créditos. Isso mudou, agora recebe-se menos. Por quê? Porque o custo da rede passou a entrar nessa conta. Foi esse o cerne da grande discussão, com a frase de efeito “taxar o sol, não”. Não era o sol, e sim o fio. Não era uma taxa, e sim tarifa, foi uma metáfora em que todos entenderam a mensagem. O que passou a se cobrar foi o uso da rede, pois só é possível fazer a geração distribuída em centros urbanos dentro de uma determinada rede.

As áreas de concessão do setor elétrico funcionam como monopólio no Brasil. Isso não impede que haja competição?
Embora o monopólio exista, pode haver concorrência dentro de uma mesma área por cooperativas ou por empresas de “energy as a service”, ou energia como serviço. Acredito que nos próximos anos veremos uma disputa dos modelos de negócio de energia por assinatura, com empresas competindo em um ambiente regulado.